Terminado o almoço, peguei um cafezinho, sentei-me na poltrona, liguei a televisão… e não houve tempo para mais nada. A campainha do portão da rua soou. Ora, quem viria incomodar um pacato idoso em uma hora destas? Espiei pelo olho mágico (o visor da porta da rua), e não vi ninguém. Havia ali apenas um cachorro. Essa criançada apronta, pensei.
Em seguida veio o replay. Sentei, a campainha tocou. Espiei, lá estava o cachorro. Saí para o jardim com o propósito de afastá-lo, mas ele me disse: “Por favor, meu senhor, teria algum alimento para me servir, uma sobra de almoço?”
O espanto quase me derruba no chão. Um cão falando! E em bom português! O bicho percebeu e tratou de me acalmar. “Sou um animal com Inteligência Artificial. IA. O senhor deve ter ouvido falar…” “Não, não” – respondi em pânico. “Isso é um absurdo!”
Mostrou com a pata um pequeno volume na cabeça, atrás da orelha direita. “É o dispositivo que contém meu cérebro humano. Ele controla meu raciocínio, meus sentimentos, e me dá voz.” Isso me irritou. “Por que, então, você tem que pedir comida nas casas?”. “É que minha categoria é de vira-lata” – respondeu.
Não havia mais o que falar. Entrei em casa, raspei as panelas, e enchi um prato de papelão. Fui ao portão e o coloquei na frente do bicho, se é que posso dizer assim. Pensei em pedir licença para me retirar, mas me dei conta do absurdo. Em todo caso, disse: “Bom apetite!”
Sentei-me na poltrona. Liguei a televisão. Em pouco tempo comecei a achar que talvez… Bem, velhos podem ter uma alucinação… Dei um tempo, espiei pelo olho mágico. Não havia cachorro, nem prato, nem nada. Ufa!
Criei coragem e fui até o portão. Sim, tudo normal. A não ser… em um trecho de terra do jardim, notei uma escrita seguramente feita por uma garra: “Muito obrigado. Estava delicioso.”
Esta crônica foi originalmente publicada no blog Vivendo e Escrevendo, em 5/10/2023.