Suely

Suely era tão paulistana que nasceu no dia do aniversário da cidade. Em um hospital da Moóca, como me contou algumas vezes – mas já não lembro mais exatamente por que a Móoca, se era lá que seus pais moravam, antes de se mudarem para a Casa Verde. Parque Peruche, mais exatamente.

Não guardei quando eles foram para lá, mas para mim Dona Diva e Seu Antenor sempre foram da Casa Verde. O que não daria para esquecer é que se conheceram no Bom Retiro, numa indústria têxtil no Bom Retiro, no começo dos anos 50.

Uma jovem lindíssima, descendente de portugueses, aprendiz de tecelã. Um sujeito feio que nem a fome, parecido com o Adoniran Barbosa, descendente de italianos feito ele, entendido de máquinas têxteis. Suely não poderia vir de casal mais paulistano.

Os textos se fazem, e eu não pretendia passar por todos esses bairros no início deste aqui, nem me alongar sobre os pais dela. Só havia pensado na primeira frase – que Suely era tão paulistana que nasceu no 25 de janeiro. Um ano antes das grandes festas do IV Centenário, a inauguração do Ibirapuera e tudo o mais. As festas vieram para comemorar um ano de vida daquela criança que deve seguramente ter sido belíssima, uma absoluta tetéia. Neste 25 de janeiro agora, um ano antes dos 470 de São Paulo, ela estaria chegando aos setentinha. Foi embora muito, muito antes.

Fazia tudo muito cedo. Casou antes de fazer 21, teve a primeira filha com 23, o primeiro marido foi embora quando ela estava com 23, com 30 e pouquinho já era mãe de três. Tudo cedo demais. Um absurdo.

Durante muitos anos brinquei que foi por causa de Suely que conquistei meu greencard para viver em São Paulo. Ao me casar com uma paulistana da gema, deixei de ser um imigrante ilegal no Primeiro Mundo que é esta cidade. Brincadeirinha boba – mas eu gosto dela. De certa maneira, de um jeito meio torto, é uma forma de agradecer a São Paulo e a Suely pelo bem que me fizeram – a cidade e aquela pessoa de coração gigante e uma bondade com que só alguns seres muitos especiais são presenteados pelo Criador – ou pelo destino, pela biologia, para quem não acredita nEle.

***

Sou uma pessoa de sorte imensa, descomunal, até mesmo desconcertante. Tive e tenho mais coisas boas na vida do que poderia imaginar nos meus mais wildest dreams – com perdão por recorrer a essa expressão, mas é que ela tem tudo a ver e é mais forte do que dita na Última Flor. Mas fiquei pensando, nestes dias que antecederam os 70 anos que ela faria, que Suely me deu imensas alegrias, e me deu a melhor coisa da minha vida, a filha que é sorte grande, que só dá orgulho e felicidade – mas eu não retribuí da mesma forma.

Ahnn… Não é exatamente assim, acho. Difícil expressar. Sim, claro, dei alegrias a ela, mas também dei uma tristeza que demorou para ir embora. Claro que foi embora, e felizmente voltamos a ser amigos, e fomos amigos, ao longo da vida – mas de alguma maneira sinto que poderia ter feito mais por ela, enquanto podia, enquanto ainda era tempo.

Volta e meia me ocorre a música “Six O’Clock”, que Paul McCartney fez para o Ringo cantar no disco dele de 1973, de que participam todos os quatro ex-Beatles, em faixas diferentes. “Every planet in the sky is in your eyes, but I don’t treat like I should.”

Não é propriamente culpa. Já senti muita culpa, lá atrás, na época da separação, mas isso não tem sentido. Não é arrependimento, não é culpa, de forma alguma – é apenas uma constatação fria, lógica, racional: Suely merecia coisa melhor. Na verdade, coisas melhores.

Acho que mais que os versos de Paul, o que se adequa a Suely são o de Don McLean em sua homenagem a Van Gogh: “I  could have told you, Vincent / This world was never meant for one / As beautiful as you”.

24 e 25/1/2023

A foto do alto é de minha autoria. A segunda é de Caio Rudolf Petersen. A terceira, essa logo acima, é de Eliana Lourenço Rodrigues. 

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *