A foto e o fato

A foto da repórter-fotográfica Gabriela Biló, publicada na primeira página na Folha de S.Paulo, suscita um debate sobre limites que devem ser respeitados. Nela, aparece a imagem de um vidro estilhaçado no Palácio do Planalto, na frente do presidente Lula sorrindo e ajeitando a gravata. A foto mostra uma situação de violência e pode sugerir um presidente que debocha do perigo.

Para representar o momento atual, tudo indica que o jornal procurava uma daquelas fotos que entram para a história, tipo a famosa do então presidente Jânio Quadros com os pés tortos e que traduziu um governo controverso e sem rumo.

Há uma diferença substantiva entre as duas imagens. Quando flagrou Jânio naquela posição, o fotógrafo Erno Schneider registrou um momento real, captado pelas lentes graças ao seu olho clínico e sua sensibilidade jornalística. Já a de Gabriela não é um flagrante de um momento, mas uma espécie de montagem, o resultado de um recurso técnico moderno de múltipla exposição. A rigor, Lula está a trinta metros do vidro estilhaçado, que na foto publicada aparece à altura do coração do presidente, como se ele tivesse sido baleado.

Diante dos acontecimentos de 8 de janeiro, entre os quais a invasão do Palácio do Planalto durante a intentona da extrema-direita, a imagem publicada pelo jornal foi interpretada como incentivo à violência contra o presidente, como se sugerisse que fosse alvo de um atentado. Choveram agressões verbais e ameaças a Gabriela nas redes sociais, por parte apoiadores de Lula.

Nada justifica tais agressões. Repudiá-las, contudo, não elimina o necessário debate sobre os limites da criatividade e a manipulação, bem como o respeito aos fatos e o senso de responsabilidade que devem ter profissionais e órgãos de imprensa.

Como linha de defesa a repórter-fotográfica argumenta que “fotojornalismo é arte”, como se isso a desobrigasse de retratar um instante de forma concreta. Na arte não há limite para a liberdade de criação e cada um também pode interpretar uma obra de arte como quiser.

O fotojornalismo é notícia, refere-se a um fato, a uma realidade concreta, que não pode ser distorcida, sob pena de cair na manipulação, prática condenada pelos manuais de redação, inclusive pela Folha.

A discussão ética que se impõe é saber até onde vai a “liberdade criativa” do fotógrafo, do editor ou mesmo do jornal.

No caso específico, como observou o ombudsman do jornal, “o semblante de Lula, através do vidro, para a grande maioria dos observadores, passa como um instantâneo legítimo, eis o problema”. Ou seja, a tênue divisa entre criatividade e manipulação foi ultrapassada porque o sentido da imagem foi alterado, possibilitando uma leitura que não é real.

Quanto ao argumento de que “fotojornalismo é arte” recomenda-se levar em consideração as palavras de Simonetta Persichetti, doutora, jornalista e crítica de fotografia: “Todo jornalista – e, sim, o fotojornalista é antes de mais nada um jornalista e não um artista – é sim responsável por aquilo que torna público e não pode se isentar afirmando que cada um interpreta como quer.”

Há outro debate tão ou mais importante, a conveniência de sua publicação na primeira página de um jornal de grande circulação nacional em uma conjuntura de radicalização política e poucos dias após a tentativa de assalto ao poder. O vidro baleado é mostrado ao lado da chamada principal que começava dizendo “No foco de Lula…”.

O país acaba de sair de uma eleição extremamente polarizada e de uma tentativa de golpe. Ademais, vivemos tempos de exacerbação da intolerância, de disseminação de fake news nas redes sociais. A imprensa, para estar a serviço da democracia e da sociedade brasileira, deve atuar permanentemente com técnica, rigor e espírito público.

A “ética da responsabilidade” impõe uma reflexão sobre a oportunidade da publicação de uma foto que pode se enquadrar como falsa e mentirosa em momento tão grave como o atual.

Fica a lição. Fatos e fotos não podem se contrapor.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 25/1/2023. 

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