No penúltimo capítulo do livro Biografia do Abismo, seus autores Thomas Traumann e Felipe Nunes respondem com um otimismo cauteloso à pergunta: existe saída para a polarização exacerbada da política brasileira?
Segundo eles, a resposta é positiva, “mas vai tomar tempo e esforço de líderes políticos no Planalto e na planície, dos partidos, do Judiciário, da mídia, das empresas e das ONGS”. Realistas, os autores definem a cicatrização das feridas do país como uma missão de longo prazo e apontam o primeiro grande obstáculo: só acontecerá se os dois lados se empenharem na pacificação, “pois não existe reconciliação de um lado só”.
Têm razão, mas temos um problema: os dois lados não querem a conciliação. Ao contrário, Lula e Jair Bolsonaro se esmeram para manter acesa a radicalização extremada e seu engessamento. O clima de guerra permanente se manifesta até mesmo em momentos de congraçamento, como aconteceu numa solenidade do Senado com os dois lados se comportando como se fossem torcidas de futebol no estádio. Um lado gritava “Lula lá!” e o outro “Lula ladrão!”
Nada nos autoriza a ser otimistas no curto prazo. O próprio presidente fez questão de demarcar o terreno, ao afirmar que a eleição municipal do próximo ano será “Lula contra Bolsonaro”. Em outras palavras, 2024 será a ante-sala de 2026, quando acontecerá a próxima disputa presidencial.
Seria simplismo atribuir exclusivamente aos dois a responsabilidade por essa polarização calcificada. Esse não é um fenômeno exclusivamente nacional. “Está umbilicalmente ligado à volta do populismo mundial que entende o antagonismo político como o confronto entre o bem (o povo) e o mal (as elites) e coloca o centro do debate no âmbito moral, em detrimento de plataformas políticas”.
Donald Trump, Javier Milei, o Brexit, Jair Bolsonaro, a vitória da extrema-direita na Itália e na Holanda são produtos desse processo.
O livro Biografia do Abismo aponta três fatos históricos recentes responsáveis pelo advento da onda nacional-populista da extrema-direita: o 11 de setembro de 2001, com o atentado às Torres Gêmeas, a crise econômica global de 2008 e a crise humanitária de 2015, quando centenas de milhares de pessoas migraram desordenadamente para a Europa.
Esse processo emergiu no Brasil na eleição de 2018, quando o voto do eleitor deixou de se definir principalmente pela questão econômica e a questão dos valores morais passou a ter quase a mesma importância. Até então, a disputa entre conservadores e progressistas se dava na visão do papel do Estado na economia e nas questões sociais.
A partir da eleição de Bolsonaro foi introduzida a questão dos valores morais e religiosos, até como contraponto ao identitarismo fundamentalista de segmentos da esquerda. Talvez um dos caminhos para baixar a adrenalina seja tratar como normal e legítima a polarização entre progressistas e conservadores e trazê-la para um terreno sadio, com cada campo respeitando a visão de mundo do outro. Em outras palavras, a esquerda deveria desativar a armadilha que ela mesmo montou – e em que caiu – de focar na agenda identitária exagerada e divisionista em vez de uma agenda social e econômica.
É preciso identificar com clareza uma estratégia para que seja superada a polarização na política. Thomas Traumann e Felipe Nunes fazem uma alegoria, com as cinco etapas do luto definidos pela psiquiatra suíça Elisabeth Kubler-Ross, para definir o caminho a seguir: “o Brasil precisa atravessar as fases da negação, raiva e depressão para chegar aos estágios da negociação e aceitação de quem vive em um ambiente de polarização extrema”.
Segundo eles, é preciso reconhecer que a polarização calcificada é uma realidade e “é quase nula a possibilidade de o país voltar no curto prazo ao diálogo organizado dos anos 1990 ao início dos anos 2000. Ao contrário, a tendência é a calcificação se acentuar”. Longe disso significar uma postura de prostração perante um quadro cuja tendência é se agravar porque é produto de intensas transformações na forma como a sociedade produz e de sua estruturação social e política.
A estratégia descortinada pelo livro vai na direção de se aprender a lidar com esse novo Brasil e traçar a linha entre o que é aceitável e o que não é. Em outras palavras: definir quais os limites tolerados por uma sociedade democrática. Isto não pode ser definido por um poder discricionário, mas pelas leis. Não se quer eliminar a disputa legítima pelos corações e mentes dos brasileiros, mas sim definir qual o Rubicão que nenhum dos lados pode ultrapassar.
Certamente tudo que ameace nossa democracia, como a intentona de 8 de janeiro de 2023, se enquadra na categoria do inaceitável, pois não se pode ser tolerante com tamanha intolerância. Outra contribuição é alertar para a possibilidade de se construir pontos comuns aos dois campos, independentemente da radicalização acirrada. A segurança, a educação, a saúde podem ser um terreno comum.
Em um país de regime presidencialista, a maior responsabilidade por sua pacificação recai sobre quem tem as rédeas do poder em suas mãos. É de Lula a responsabilidade de fazer os gestos necessários para a concórdia nacional. Slogans como “Reconstrução e União”, “Somos um só povo” são bem-vindos, mas se resumirão a mera peça publicitária, sem impacto na realidade se não vierem acompanhados de uma efetiva mudança de mentalidade e atitudes. Dizer, na véspera do Natal, em pronunciamento na TV, que ódio deixou cicatrizes não contribui com coisa alguma.
Também só será possível a pacificação se a direita tradicional e democrática sair debaixo do guarda-chuva do bolsonarismo, rompendo a aliança estabelecida em 2018 e 2022 e movimentando-se mais para o centro. É alentador o fato de essa direita não ter embarcado no 8 de janeiro. Ao contrário, o condenou e manteve seu compromisso com a democracia.
Sim, é possível superar a polarização insensata, mas até lá teremos de percorrer uma longa estrada, com muitas pedras no meio do caminho.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 27/12/2023.