Pode-se até discordar da dosimetria das penas, mas a condenação dos primeiros réus do 8 de janeiro foi precisa e didática. Prevaleceu o entendimento de que a democracia é valor supremo do país, não havendo, portanto, espaço para atentar contra ela. Ainda assim, nós na garganta impedem que se comemore. Firme na reação ao golpismo, o tripé institucional – Justiça, Executivo e Legislativo – tem falhado feio, minando a democracia que diz defender.
Embora os exemplos sejam vários, alguns abusos recentes são o bastante para demonstrar o pouco caso do STF, do Planalto e do Congresso com imperativos democráticos – liberdade, respeito ao contraditório e às minorias, legalidade e moralidade.
Na Corte Suprema, o ministro Dias Toffoli decidiu anular as delações da Odebrecht no âmbito da Lava-Jato, invalidando provas, processos e condenações provenientes delas. A decisão monocrática tem como base a ausência de autorização de colaboração judicial com a Suíça e dados do que ficou conhecido como vaza-jato. No caso da Suíça, Toffoli simplesmente fez que não viu os documentos de oficialização da colaboração. No outro, o material, obtido de forma ilegal pelo hacker Walter Delgatti, agora enrolado com as tentativas golpistas do ex Jair Bolsonaro, não pode ser utilizado como prova e nem teve suas íntegras confirmadas por peritos.
Não é pouco. Um único supremo ministro anulou crimes confessos depois de o processso ter sido visto e aprovado, coletivamente, em três instâncias, incluindo o próprio STF. E agiu por motivação pessoal e leviana. Buscava o perdão do presidente Lula, profundamente magoado desde que o ministro nomeado por ele o impediu de deixar a prisão para ir ao velório do irmão. Para agradar Lula, Toffoli, um dos 11 integrantes da Corte Constitucional, jogou a Justiça no lixo, fazendo a alegria dos corruptos. Com decisões assim, a democracia sangra.
Eleito a partir da formação de uma aliança pró-democracia, o presidente Lula estabeleceu diferenciais importantes em relação ao seu antecessor. Suas relações com os demais poderes são exemplares e, ao contrário do que fez nos dois primeiros mandatos, não tem incentivado os seus contra a imprensa livre. Mas escorrega. E muito. Além de defender com unhas e dentes governos ditatoriais, a exemplo de Venezuela, Nicarágua e Cuba, onde desembarcou na sexta-feira, mete os pés pelas mãos para proteger o autocrata russo, Vladimir Putin, chegando ao cúmulo de dizer desconhecer – e até levantar a hipótese de desfiliação – o Tribunal Penal Internacional, do qual foi signatário com pompa e loas.
Internamente, seu governo tropeça e agride a democracia ao repetir o ex, impondo sigilo a atos e contas públicas. E ao monitorar e processar a liberdade de opinião, atribuição da recém instalada Procuradoria Nacional da Defesa da Democracia, alocada na Advocacia-Geral da União. Ora, não há fake news que justifique um aparelho de Estado para zelar pela “verdade”. Mesmo admitindo-se que as intenções sejam as melhores, não combina em nada com a democracia atribuir ao governo as prerrogativas de ditar, denunciar ou impingir “verdades” aos cidadãos.
No Parlamento, as violações contra a democracia têm sido sistemáticas. Não bastasse o orçamento secreto vigente em 2021 e 2022, com milhões de reais do pagador de impostos sendo distribuídos por suas excelências sem qualquer transparência, agora a Câmara dos Deputados inventou uma minirreforma eleitoral que estapeia a cara de todos os eleitores.
Multas por irregularidades nas prestações de contas foram reduzidas a 10% do valor recebido pelo Fundo Partidário e candidato algum precisará apontar gastos antes da contabilidade final da campanha. Mudaram-se as regras de inelegibilidades previstas pela Lei da Ficha Limpa, reduziu-se a obrigatoriedade de participação de candidatas mulheres e de negros. Candidaturas coletivas, conquista inequívoca de minorias e ativistas sociais, foram proibidas. E vai piorar: nesta semana, os deputados devem aprovar a anistia mais ampla e irrestrita da história, perdoando todas as dívidas e processos pendentes do TSE. Uma farra.
O Senado ainda pode barrar ambas iniciativas. O presidente da Casa, senador Rodrigo Pacheco, já disse que não pretende votar nada às pressas. Mas na Câmara os projetos só foram rejeitados pelo PSOL, Rede, Novo e Podemos. Têm amplo apoio do governo e da oposição, com lulistas e bolsonaristas unidos na imoralidade.
A democracia venceu nas urnas contra o ataque ferrenho do ex Jair Bolsonaro. Venceu ao impedir o golpe de 8 de janeiro, quando vândalos quebraram as sedes dos Três Poderes para pressionar por intervenção militar. Venceu nos primeiros julgamentos e condenações dos golpistas. Mas só será inabalável se praticada cotidianamente. Por todos. A começar por aqueles aos quais os brasileiros confiam a missão institucional de protegê-la. Do contrário, estamos nos arriscando a perdê-la.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 17/9/2023.
Magistral panorama revelado em texto preciso e inquestionável por Mary Zaidan. A última coisa que interessa à maior parte desses pilantras é o bem do País e da população.