Otários

Quando o napoleão de hospício havia acabado de vencer o segundo turno da eleição de 2018, encontrei no meu banco um lídimo representante da elite londrinense, todo assanhado e eloquente. Dizia ele que, enfim, ia-se instalar o verdadeiro presidencialismo no Brasil. Eu era uma figura conhecida, fora diretor de redação da Folha de Londrina e me dava com muita gente, da esquerda à direita. Mas não sabia que o cidadão que se empinava ao meu lado, e eu conhecia de longa data, era tão retrógrado e autoritário quanto revelou ser.

Perguntei como seria esse verdadeiro presidencialismo. A resposta veio quicando nos dentes: vamos fechar o Supremo Tribunal Federal e também o Congresso Nacional, se não for a nosso favor. Ainda sorridente, comentei: então você agora é um defensor da monarquia. E ele: da monarquia não, do presidencialismo sem contestação!

E ainda explicou: elegemos o presidente com o nosso voto, o Supremo não foi eleito, então fora com ele, e o Congresso se não andar na linha conosco, fora também. Quem tem mais voto é que manda. É assim que eu penso.

Vou lhe mandar um presente, eu disse, que sempre tive em cima de minha mesa de trabalho no jornal, um exemplar em forma de livro de bolso, muito fácil de consultar, da Constituição Federal de 1988.

E ele: Nem ela escapa. Vamos tirar dela, ou modificar, tudo que pode ser contra nós.

A fila andou, fui atendido pelo caixa e dei adeus. Nunca mais o vi. Mas ele me dera um roteiro completo para eu acompanhar o passo a passo do governo do napoleão na cadeira presidencial. E a cada dia que passava, após a posse, formei a opinião empírica e real de que, primeiro, todo bolsonarista, sem exceção, era um golpista; segundo, que todo bolsonarista era um anarquista. E, terceiro, que todo bolsonarista é um otário.

Vou explicar a terceira categoria, porque a primeira e a segunda todo mundo já sabe.

Todo bolsonarista é um otário porque acredita que o Deus dos Exércitos é que puxa, como um burro de carga, a carroça em que ele está abancado. Daí que o otário tem confiança absoluta e resoluta nos rumos que o cavalo, a mula ou a cabra – qualquer que seja o animal que, na real, esteja puxando sua carroça – está seguindo. Erigido a semideus, o animal sabe mais do que ele para onde está indo. A devoção dos otários ao cavalo, à mula ou à cabra chega a tal ponto que transformam a espécie em mito.

E lá vai o otário bolsonarista em sua carroça para o abismo da cachoeira que despenca logo ali na frente, menos de quatro anos depois de iniciada sua jornada – que deveria ser a mais longa, talvez de uns 900 anos, como a idade em que teria morrido o bíblico Matusalém.

Uns dias depois, andando por uma calçada das ruas arborizadas de Londrina, deparei com um grupo de vendedores de uma concessionária de automóveis em conversa animada. Tinham acabado de comer suas marmitas. Eram uns quatro e desacelerei o passo para ouvir.

O Brasil só toma jeito com um golpe militar – dizia o mais falante. E têm que morrer uns 300 mil pra todo mundo acreditar que é um golpe de verdade. Aqui tem que ter morte! Muita morte!

Depois ouvi o mesmo veredicto de um grupo que falava alto e grosso no calçadão do centro da cidade.

Lembrei do fascista endinheirado que havia encontrado no banco e formei uma opinião também empírica e real. Os otários estão por toda parte, no topo, no meio, na base da pirâmide social. Da alta Medicina – o que tem de médico otário bolsonarista é constrangedor – aos canteiros de obras Brasil afora.

Numa obra ao lado do apartamento em que moro agora, em Porto Alegre, tem uma retroescavadeira gigante com uma bandeirola do Brasil cravada na capota da cabine do tratorista. Há meses estão trabalhando nas fundações do novo prédio. Como de tempos em tempos mudam de tratorista, mas a bandeirola continua lá, não sei dizer com certeza se os tratoristas são todos otários.

Também são otários bolsonaristas os empresários que passaram a defender alegremente os juros escorchantes impostos pelo Banco Central há sete meses seguidos, só porque, agora, Lula está metendo o pau no BC e no seu presidente autônomo – um bolsonarista com mandato até 2024. Nunca vi empresário defendendo juro de agiota, como os atuais 8% de juro real (descontada a inflação – i.é, os 13,75% menos a inflação de 5,79% em 12 meses).

Para o BC, o governo Lula é fonte de incertezas sobre o futuro. No ano passado, o napoleão não era. O motivo, para o juro de agiota do BC então, é que era preciso ajudar o governo a fazer a inflação ficar dentro da meta, pois o coitadinho estava tendo que gastar demais (para furar o teto de gastos e ganhar a eleição, que não conseguiu por um triz). Está escrito, com outras letras, nas atas do Copom.

Otários, estes últimos, mas nem tanto, quando metem a mão na massa.

Nelson Merlin é jornalista aposentado. 

9/2/2023

 

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