Sempre sujeitas a surpresas durante as investigações, Comissões Parlamentares de Inquéritos têm fama pelo seu término incerto, não raro com conclusões contrárias às previstas inicialmente. A que apura as ocorrências do 8 de janeiro não é exceção à regra.
No ímpeto de criar uma falsa narrativa sobre os atos golpistas, a tropa de choque bolsonarista apostou na CPMI para constranger o governo Lula – e tudo tem saído ao avesso do que imaginavam os autores da grotesca ficção. O Rolex que o então ajudante de ordens de Bolsonaro, tenente-coronel Mauro Cid, tentou vender por 60 mil dólares é só um nó a mais na corda em torno do pescoço do ex.
Bolsonaristas forçaram a barra para criar a Comissão Mista sob a premissa absurda de que a vandalização às sedes dos Três Poderes teria sido incentivada pelo time de Lula, que se beneficiaria dos atos golpistas. O governo não queria a CPMI. O presidente Lula chegou a se empenhar para que ela não fosse instalada, o que acabou por alimentar a sandice da insólita “culpa” do petista. Nas redes, a versão chegou a ganhar corpo.
Houve momentos em que os defensores dessa tese esdrúxula até conseguiram algum sucesso, com acusações às equipes de inteligência e de segurança do atual governo, que teriam sido avisadas do perigo iminente e nada fizeram. Durou pouco.
Ao documento de oficialização do pretendido golpe, apreendido na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres, que será ouvido nesta terça-feira pela CPMI, às maluquices do deputado Marcos do Val, presente em uma reunião com o ex em que Daniel Silveira teria proposto gravar o ministro do Supremo Alexandre de Moraes, somaram-se outros revezes para a turma bolsonarista.
Na semana passada, os aliados do “mito” ainda não tinham deglutido a operação da PF contra o hacker Walter Delgatti Neto e a deputada Carla Zambelli (PL-SP), suspeita de ter contratado o profissional para invadir os sistemas da Justiça e interferir nas urnas eletrônicas, quando vieram novos dissabores com o tenente-coronel Cid, que já os havia fragilizado com o seu silêncio fardado ao comparecer diante da Comissão.
Cid, envolvido na falsificação de atestados de vacina da Covid para ele, sua mulher e para o ex-presidente, foi interlocutor privilegiado de companheiros de armas em prol de um golpe. Agora, sua tentativa de vender o relógio Rolex cravejado de diamantes que Bolsonaro recebera do rei da Arábia Saudita Salman bin Abduld-Aziz está exposta sem firulas em mensagens de texto, com preço e urgência. Um escárnio sob qualquer ângulo. Da ilegalidade à imoralidade, agravado pelo vexame ao Exército, casa do militar de elite que se prestou ao papel de muambeiro.
O precioso Rolex nada tem a ver com os atos golpistas de 8 de janeiro e, portanto, com a CPMI em curso. Mas tem capacidade de provocar mais estragos ao ex do que os atos antidemocráticos, que tanto Bolsonaro e os seus estimularam.
O relógio de luxo faz reavivar a memória das outras joias das Arábias, o conjunto milionário destinado à ex-primeira dama Michelle, que a Receita Federal impediu que entrasse ilegalmente no país dentro da mochila de um assessor ministerial.
Deveria ampliar a percepção de que para Bolsonaro, acima de tudo e todos estão os milhões que podem ser acumulados. Por meio de diamantes, relógios ou doações em Pix.
Ainda assim, o mais provável é que o ex dê de ombros e renove a chacota. Fará isso enquanto existir quem se disponha a pagar suas contas – com sobra para o pastel.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 6/8/2023.