Recentemente, numa entrevista à Rádio Gaúcha, Lula afirmou que a Venezuela tem mais eleições do que o Brasil e definiu: “o conceito de democracia é relativo”.
O presidente tentava justificar seu apoio ao ditador Nicolás Maduro.
Lula tem sobejas informações de que em Cuba, na Nicarágua e na Venezuela não há separação dos poderes, eleições livres, pluralismo efetivo, garantia das liberdades públicas e individuais. O regime cubano é uma ditadura de partido único, a Nicarágua uma ditadura nepotista e a Venezuela uma outra ditadura. No caso dos dois últimos países, usaram a democracia como um expediente tático para chegar ao poder, para em seguida deformá-la e suprimi-la.
Se não é por falta de informação, quais categorias mentais levam Lula e grande parte da esquerda a ter uma visão seletiva sobre a democracia? O presidente condena e denuncia atentados à democracia cometidos por governos de direita, no que está correto, mas cala-se e não condena as mesmas violações quando praticadas por governos de esquerda.
Qual a coerência de ser contra o 8 de janeiro, mas guardar silêncio tumular quando lideranças oposicionistas são impedidas, pelo regime venezuelano, de participar nas eleições presidenciais, como aconteceu com a principal liderança oposicionista, Corina Machado?
Certamente uma primeira categoria mental é a priorização da “igualdade” em detrimento da democracia. Em nome dos supostos “avanços sociais” fecham os olhos às atrocidades cometidas por regimes de esquerda. Isso é muito cristalino na defesa de Cuba. A solidariedade irrestrita às ditaduras de esquerda se dá ainda sob pretexto de que os três “países irmãos estão sob cerco do imperialismo yankee”.
A outra categoria é “não criticar os amigos para não fazer o jogo da extrema-direita”, como o presidente brasileiro afirmou em seu discurso na abertura do 26º Encontro do Foro de São Paulo. No passado, não se denunciava os crimes de Stalin sob o pretexto de que a “Pátria-mãe” do socialismo estava sob cerco da reação mundial. Agora é usada a mesma métrica com ditaduras camaradas.
Há uma chantagem nesse argumento: carimbar como extrema-direita quem apontar as violações à democracia e aos direitos humanos cometidos pelos ditadores Daniel Ortega, Miguel Dias-Canel e Nicolas Maduro. Quem faz mesmo o jogo da extrema-direita é Lula. Suas declarações sobre a Venezuela dão munição para o discurso anticomunista, alimentando o fantasma de que o Brasil pode virar um “país comunista”.
Talvez o fator principal seja o antiamericanismo, sentimento unificador de uma esquerda terceiro-mundista. O Documento-Base do recente encontro do Foro de São Paulo, realizado em Brasília aponta os Estados Unidos como a principal ameaça aos países da América Latina e do Caribe, enquanto a China, país de ditadura de partido único, é visto como fator de estabilidade e de paz na região!
O temor de se confundir com a extrema-direita tem levado muitos dos nossos intelectuais a se calarem em relação a Cuba, Venezuela e Nicarágua. A patrulha ideológica impõe o anátema a quem ouse discordar do seu credo. Fidel Castro é venerado como um semideus, a quem Lula tem o desejo de substituir como a grande referência de uma esquerda prisioneira de dogmas e modelos que, como cantava Belchior, são uma roupa que já não nos serve mais.
É preciso jogar luz no debate necessário, e imprescindível, sobre o papel da democracia, como uma conquista civilizatória da humanidade, a ser cultivada e preservada.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 6/9/2023.