A questão dos direitos humanos sempre foi um tema sensível ao Partido dos Trabalhadores. Diversas vezes o PT denunciou violência policial cometida por governos aos quais fazia oposição. Assim procedeu no recente episódio do Guarujá, onde 16 pessoas foram mortas em ação policial. O ministro da Justiça, Flávio Dino, qualificou o episódio como “execução sumária”.
No mesmo período, uma série de operações policiais na periferia de Salvador deixou como saldo mais de 30 mortos. Sobre eles o ministro não disse uma única palavra. Entende-se a métrica governista. A Bahia é governada pelo PT desde 2007.
A violência policial na Bahia tornou-se um tema incômodo para o governo Lula. Em especial para o ministro chefe da Casa Civil, Rui Costa. A violência no Estado disparou nos seus dois mandatos de governador, de 2014 a 2022.
Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 12 dos 50 municípios brasileiros mais violentos, com mais de cem mil habitantes, são baianos. Jequié, também da Bahia, lidera esse ranking macabro. O Estado só fica atrás do Amapá em número de mortes violentas – 47,1 mortes por cem mil habitantes, tendo ultrapassado já há alguns anos o Rio de Janeiro. Sua polícia é a segunda mais letal do país.
Diante de tais números, Rui Costa e o atual governador do Estado, Jerônimo Rodrigues, também do PT, brigam com as estatísticas. Segundo informações da Secretaria de Segurança, o Estado não contabiliza as mortes de “pessoas inocentes” na mesma conta de “homicidas, traficantes, estupradores, assaltantes entre outras pessoas que morreram em confronto durante ações policiais”.
Claramente, a realidade é deformada para apresentar um quadro menos dramático do existente. Segundo dados do mesmo Fórum, em 2022 ocorreram na Bahia 6.659 mortes violentas, das quais 1.464 se deram em intervenções policiais. A Secretaria de Segurança Pública, por sua vez, deixou de contabilizar, no mesmo ano, as mortes decorrentes de ação policial, diminuindo o número de mortes violentas para 5.160 mortes. Há um fato inconteste: em 2015, primeiro ano do governo Rui Costa, as mortes advindas da intervenção policial foram 354. No último ano de seu governo, esse número saltou para 1.464.
Já o ministro-chefe da Casa Civil disse não levar em consideração o anuário do conceituado Fórum porque compara “laranja com abacaxi”, leia-se “mortes de inocentes com mortes de traficantes”. Rui Costa preconiza a criação pelo governo de um “parâmetro único” para aferir as mortes por violência, em uma mal disfarçada manobra para mascarar o profundo incômodo causado pela escalada da violência no Estado.
Entende-se seu empenho em maquiar a realidade. A violência na Bahia disparou nos oito anos do seu governo. O marco temporal dessa escalada foi a chacina do Cabula, bairro da periferia de Salvador, quando 12 jovens, todos eles pretos e pobres, foram assassinados em um campo de futebol por policiais militares da Rondas Especiais da Bahia.
Segundo a denúncia do Ministério Público, as mortes tiveram característica de execução primária pois as vítimas receberam tiros em plano inferior ao dos policiais, indicando que estavam ajoelhadas ou deitadas. No dia seguinte à chacina, o então governador Rui Costa elogiou os PMs que participaram da ação, comparando-os a “um artilheiro à frente do gol”. O ex-governador é dado a declarações polêmicas. Em janeiro de 2016 disse que a polícia baiana estava autorizada a indiciar pais ou responsáveis por crianças ou adolescentes acusados de cometerem algum delito.
Qualquer semelhança com o ex-governador do Rio Janeiro, Wilson Witzel, descendo do helicóptero comemorando a morte de um sequestrador não é mera coincidência. É a confirmação de que governos de direita e de esquerda, a despeito das diferenças ideológicas, praticam o mesmo tipo de política de segurança pública.
De acordo com Samuel Vida, professor da UFBA, “Desde 2007, com Wagner (Jacques Wagner, líder do Governo Lula no Senado), as ações governamentais na área da segurança pública foram conduzidas pela adesão ao modelo penal do populismo punitivista, materializado, sobretudo, na falácia da ‘guerra às drogas’ e na explícita orientação da atividade policial para o confronto, como estratégia política”.
Sim, na Bahia inocentes também perdem suas vidas, vítimas do confronto entre policiais e bandidos. E balas perdidas também matam crianças, como aconteceu em Lauro de Freitas, município da região metropolitana de Salvador, com um menino de dez anos, Gabriel Silva Conceição Junior.
Diante de tais perdas, a reação das autoridades estaduais segue o figurino de dizer que vão apurar as responsabilidades, mas ninguém é punido. Os responsáveis pela chacina do Cabula até hoje estão impunes. O governador Jerônimo reza por essa cartilha: “O nosso compromisso é na apuração de casos de eventual excesso por parte de qualquer servidor, qualificação permanente da atuação policial para garantir mais eficiência na ação, respeito à legislação e preservação da vida”. Acredite se quiser.
Não se ignora que governos, sejam de direita ou de esquerda, enfrentam o grave problema de segurança. Não há solução simplista e os problemas não serão debelados apenas pela ação dos governos subnacionais, sempre haverá uma responsabilidade do governo federal. Os estados carregam um fardo pesado. Mas não se pode fechar os olhos às violações aos direitos humanos, sobretudo quando cometidas por agentes públicos. Não é para isso que o Estado lhes paga.
Tampouco pode se admitir uma postura seletiva na denúncia de tais violações. Condena-se execuções sumárias quando cometida pela polícias de governos de “direita” e fecha-se os olhos quando executadas por “governos companheiros”. Do Partido dos Trabalhadores e do governo Lula cobra-se coerência na observação dos direitos humanos. Imaginem o tamanho da gritaria se, por acaso, os governos de São Paulo, Minas ou Rio de Janeiro eliminassem de suas estatísticas de Segurança as mortes em decorrência da ação policial.
Ao apelar para tal expediente, os governos petistas tentam encobrir com a peneira seu enorme telhado de vidro na questão da segurança pública: os índices de violência na Bahia, pedra no sapato do Partido dos Trabalhadores.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 23/8/2023.