O golpe nas quatro linhas

Estado de sítio decretado “dentro das quatro linhas”. Está lá escrito no documento extraído pela Polícia Federal do celular do tenente-coronel Mauro Cid, ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro. Pelo que se sabe até agora – e ainda falta muito a ser esclarecido -, as tais quatro linhas popularizadas pelo ex para dizer que agia dentro dos limites da Constituição se aplicam melhor às suas opções golpistas.

As tentativas de melar o jogo e estabelecer estado de exceção podem ser divididas exatamente em quatro: 1) descrédito ao processo eleitoral; 2) impedimento ao exercício do voto; 3) articulação para conferir “legalidade” ao golpe; e 4) sequência de atos violentos em Brasília (quebra-quebra no dia da diplomação do presidente eleito, bomba nas imediações do aeroporto e tomada da Praça dos Três Poderes em 8 de janeiro).

O 7 de setembro de 2021 foi o primeiro grande ato. Diante de multidões concentradas na Esplanada dos Ministérios e depois na Avenida Paulista, Bolsonaro ameaçou integrantes do Supremo Tribunal Federal, incentivou a desobediência à Justiça e chamou de “farsa” eleições sem voto impresso. Não tergiversou, deixando claro sua disposição golpista: “Só saio preso, morto ou com vitória. E quero dizer aos canalhas que eu nunca serei preso.”

Panos quentes, uma carta redigida pelo ex Michel Temer e até encontro pessoal com o desafeto ministro do STF Alexandre de Moraes fizeram parecer que a sanha golpista tinha esmorecido. Qual o quê. Bolsonaro mexeu mundos e fundos para ter dinheiro a rodo no ano eleitoral, arrumou mais briga com o Supremo e retomou a pregação pelo voto impresso que já havia sido derrotado no Parlamento. Aqui, incluiu o abuso de convocar embaixadores para, em reunião no Palácio do Alvorada, desacreditar as eleições, o sistema eleitoral e a democracia brasileira. Por esses crimes, Bolsonaro será julgado quinta-feira, 22, no pleno do TSE, com possibilidades reais de se tornar inelegível.

Derrotado em várias frentes, tanto na tentativa de minar a confiança no voto eletrônico quanto nas urnas do primeiro turno, Bolsonaro contou com a turma amiga da Polícia Rodoviária Federal para realizar operações padrão nas estradas no dia de votação do segundo turno. Com uma orientação: barrar ônibus no Nordeste, onde Lula obteve larga margem de vantagem. Os fardados que ele transformou quase em uma força particular nem se deram ao trabalho de disfarçar. No período, 46,5% das operações da PRF se concentraram no Nordeste.

Como essa segunda linha também malogrou e o tempo corria, era preciso acelerar os procedimentos “legais” para garantir a permanência do capitão depois de ele ser abatido pelas urnas. Entram aí a minuta de golpe encontrada na casa do ex-ministro Anderson Torres, que previa intervenção no TSE, e os documentos de Mauro Cid, que, ao apagar seu celular, imaginou ter tido uma troca de mensagens segura.

De acordo com a PF, o aparelho estava morto, mas da nuvem veio a tempestade. O roteiro, divulgado pela revista Veja, e os documentos abertos após o ministro Alexandre de Moraes suspender o sigilo das investigações, revelam a tentativa de “legalizar” o golpe. Mas, “infelizmente”, lamentou Cid, o chefe não tinha confiança no alto comando do Exército. Assim, fracassou.

As mensagens obtidas pela PF apontam para o óbvio: Bolsonaro não queria ter suas digitais impressas no golpe. Era o beneficiário, mas preferia que a iniciativa de impor estado de exceção partisse dos militares e não dele. Sabia, é claro, do alto risco da intentona.

A defesa do ex diz que as transcrições deixam claro que Bolsonaro nada tinha a ver com a armação. Não há uma única menção direta de ele mandar fazer A ou B, embora as “quatro linhas” estejam lá impressas na declaração de estado de sítio. Seja como for, de duas uma: ou Bolsonaro participava e sabia de tudo, ou, idiota, estava cercado por gente de confiança que tramava em seu favor às escondidas, mesmo que isso levasse todos à prisão. Amigos assim é melhor não ter.

A quarta linha se rompeu no fatídico 8 de janeiro, reta final dos acampamentos nas portas dos quartéis. Dias antes, a violência deu as caras no centro de Brasília, com ônibus incendiados em protesto a prisões feitas pela PF. Na véspera do Natal, um misto de sorte e história inexplicada abortou um atentado ao aeroporto da Capital Federal. Uma semana depois da posse de Lula, uma multidão ensandecida invadiu a Praça dos Três Poderes – e, sob o olhar plácido da polícia, vandalizou as sedes do Congresso Nacional, do STF e o Palácio do Planalto. Algo nunca visto.

Frustrado nas quatro linhas golpistas, Bolsonaro está perto de ser expulso. No esporte, os limites do campo permitem jogar a bola fora, cobrar o lateral ou o escanteio e voltar ao jogo. Essas regras, felizmente, não se aplicam à democracia.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 18/6/2023. 

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