O fim de um ano e o início de outro nos remete a balanços, listas de resoluções, virada de página, renovação de esperanças, alegria e festa. Portanto, é quase incompreensível que o governo Lula tenha optado por agir na contramão: em vez de comemorar o primeiro quarto de seu mandato, que se completa amanhã, preferiu lançar uma Medida Provisória no mínimo polêmica para aumentar a arrecadação, confrontando o Congresso Nacional. E concentrar forças para um ato de desagravo pelo 8 de janeiro para, segundo o presidente, “lembrar ao povo que houve uma tentativa de golpe, que foi debelado pela democracia deste país”. Definitivamente não parece ser a melhor maneira de começar um novo ano.
Ainda que a MP patrocinada pelo ministro da Fazenda Fernando Haddad possa conferir mais justiça diante da farra de privilégios que o Congresso acabou fazendo com o orçamento, o erro temporal é impressionante. Foi assinada na sexta-feira, no apagar das luzes de 2023, deixando a estranha impressão de que o objetivo era esconder, inibir e adiar o debate. De teor explosivo por anular a desoneração da folha de pagamentos de 17 setores aprovada pelo Congresso, a MP será pano para longas mangas na primeira semana do ano, mesmo que o tema só seja analisado de fato no retorno do recesso parlamentar, em fevereiro. A probabilidade é pequena, mas pode até mesmo ser devolvida pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco.
De propósito – para colocar um bode na sala e conseguir aprovar parcialmente aumento imediato de receita – ou não, com a MP Haddad contratou dores de cabeça para o início de 2024. Mas Lula fará pior. É surreal o governo brasileiro patrocinar um evento para “festejar” a democracia no “dia da infâmia”, título apropriadíssimo dado pela ex-presidente do STF Rosa Weber para a barbárie contra as sedes dos Três Poderes, em Brasília.
Além da chance de ser esvaziado – vários governadores ligados ao ex Jair Bolsonaro já declinaram o convite e as férias parlamentares não ajudam -, o evento tem cara, corpo e alma de populismo barato, no qual se aproveita um episódio de seriedade extrema para inflamar o “inimigo”.
Por óbvio, a data tem de ser lembrada – e não há como esquecê-la -, mas não “comemorada”. Especialmente em um país que para impedir o golpismo avançou muitos sinais vermelhos.
Quase um ano depois dos atos de vandalismo, 58 pessoas continuam presas na Papuda, em Brasília, sem julgamento. Delas, 33 aguardam decisão do STF e outras 25 ainda estão sendo investigadas. Isto é: são presos políticos, categoria de detenção que o Brasil imaginava ter deixado para trás junto com a ditadura.
Democracia não é discurso, é prática.
Não adianta repudiar o 8 de janeiro e restringir a liberdade de imprensa, como fez a Suprema Corte há pouco mais de um mês, ao decidir que os veículos de comunicação são responsáveis pela fala dos entrevistados, um absurdo inconcebível até nas democracias imaturas.
Lula ambém não contribui para promover o ambiente democrático quando, no afã de proteger o amigo Nicolás Maduro, ditador-presidente da Venezuela, diz que o “conceito de democracia é relativo”. Ou quando afirma que a “Venezuela é uma democracia, tem mais eleição do que o Brasil”, como se o número de pleitos fosse um medidor válido para definir o índice de democracia. No país vizinho, eleições nada significam porque Maduro impede a participação da oposição, banindo ou prendendo qualquer um que “ouse” enfrentá-lo nas urnas. Recentemente, deu uma demonstração fabulosa da sua “democracia” ao conduzir um plebiscito de cartas marcadas para o povo “aprovar” a anexação de Essequibo, território da Guiana, riquíssimo em petróleo.
Internamente, Lula é um democrata, quanto mais se comparado ao ex. Mas sua democracia relativa inclui tratamento VIP a outras ditaduras, como a de Daniel Ortega, na Nicarágua, do russo Vladimir Putin, de Mohammad bin Salman, príncipe autocrata da Arábia Saudita, ou ao regime cubano. No mínimo, há descompasso entre seus pesos e suas medidas.
O mais curioso é que Lula poderia iniciar o ano comemorando feitos – inflação, juros e desemprego em queda, aprovação de um novo sistema tributário, vacinação infantil em alta, Amazônia com redução drástica do desmatamento -, mas escolheu o caminho do confronto. No Congresso e nas ruas. Para o animal político que é não se pode dizer que o fez por acaso. Talvez queria manter o inimigo em forma na expectativa de colher frutos futuros. A ver.
A todos, um 2024 supimpa.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 31/12/2023.