Hecatombe peronista

A Argentina já foi a sexta economia do mundo. Tinha um PIB per capita superior ao da França ou da Alemanha. Nos anos 20 sua frota de automóveis era a segunda do mundo, perdia apenas para os Estados Unidos. Mas tudo isso é passado: há pelo menos 50 anos vive uma decadência sem fim.

Ciclicamente sua economia entra em crise, a inflação cresce exponencialmente, sua moeda se desvaloriza, o país dá o calote de sua dívida externa, gira a manivela de imprimir dinheiro e congela os preços. A Argentina é hoje um exemplo de que países também fracassam.

Neste domingo, em meio a inflação de 120%, do dólar valendo 600 pesos e de ter 40% da população na linha da pobreza, o país realizou seu termômetro para a próxima a disputa presidencial: as PASO, Primárias Abertas, Simultâneas e Obrigatórias. Nelas, os argentinos decidiram punir o principal responsável pelo ocaso do país. O peronismo sofreu a maior e mais expressiva derrota eleitoral de sua história, desde 1946, quando chegou ao poder pela primeira vez.

A coligação liderada por Sérgio Massa ficou em terceiro lugar. Na hipótese de a disputa presidencial não se decidir no primeiro turno, os peronistas correm o risco de ficar fora do segundo turno. Mais do que uma derrota, as Paso indicam o esgotamento do peronismo. Sobretudo do modelo baseado no intervencionismo estatal, em uma economia fechada, em subsídios e benefícios indistintos.

O grande vencedor das primárias foi o direitista radical Javier Milei, autodefinido como “anarcocapitalista”. Sua vitória foi uma espécie de que “se vayan todos”, como expressão do cansaço dos argentinos com os partidos tradicionais, a quem Milei chama de “casta política”. Nesse sentido, é um fenômeno semelhante ao que elegeu Jair Bolsonaro em 2018, sendo, portanto, filho legítimo da antipolítica. Incontestavelmente, sua vitória é prova da guinada à direita da Argentina depois dos quatro anos desastrosos do presidente peronista Alberto Fernandes.

Os mesmos ventos deram à aliança Juntos por el Câmbio, de centro-direita, o segundo lugar nas primárias. No interior dessa aliança, a vencedora foi sua candidata mais à direita, Patricia Bullrich.

O peronismo sai das PASO profundamente abalado. Teoricamente, pode ir para o segundo turno, até porque a vantagem da coligação de Patricia Bullrich para Sergio Massa foi “por uma cabeza”, como canta o tango argentino. Mas, se operar o milagre, é muito improvável sair vitorioso na rodada final. A direita radical e a centro-direita tendem a se compor no segundo turno se o adversário for o peronista.

Javier Milei é chamado de “Bolsonaro argentino”, mas há nuances em relação ao ex-presidente brasileiro. Do ponto de vista econômico, sua agenda é de um ultraliberalismo astronômico. Comparado com ele, Paulo Guedes é um liberal moderado.

Em seu programa consta a experiência já tentada, e fracassada na Argentina, de dolarização da economia. Esse caminho foi percorrido nos tempos do presidente peronista Carlos Menem e do ministro da Fazenda Domingos Cavallo. Levou a indústria à ruína e esteve na origem da grande crise econômica do início deste século. Milei promete ainda extinguir o Banco Central. As duas medidas levariam a Argentina a abrir mão de ter uma política monetária própria, passando a depender das decisões do Federal Reserve, o banco central dos Estados Unidos.

Sua agenda social é liberalismo selvagem em estado puro. A educação deixaria de ser obrigatória e gratuita e a saúde deixaria de ser gratuita. Por tudo isso, a possibilidade de sair vitorioso ao final da disputa presidencial provocou grandes temores no mercado. O dólar disparou para 670 pesos e a taxa de juros pulou para 118%.

Caso sua vitória se confirme, a Argentina, cujo sindicalismo é bastante forte, viverá tempos de grande convulsão social, porque haverá resistência à cortes de benefícios sociais. Esse quadro seria agravado pela reação dos 40% de argentinos na linha da pobreza, que dependem de algum tipo de auxílio do Estado para sobreviver. A instabilidade também se dará na política porque seu governo seria minoritário no Parlamento, onde sua agenda econômica teria de ser aprovada por implicar em mudanças constitucionais.

A hecatombe peronista nas primárias e a vitória de Javier Milei provocaram uma mudança tão grande na política argentina que até Lula passou a torcer por Patricia Bullrich, única candidata capaz de atrair apoio em um segundo turno para derrotar Milei. Caso a disputa na rodada final seja com o peronista Massa, a vitória do candidato da direita radical é tida como coisa decidida.

Entende-se a recente torcida de Lula pela candidata do Juntos por el Câmbio. Ainda que prometa ter uma postura “mais ocidentalista” na política externa, Bullrich não propõe o fim do Mercosul, como preconiza Milei. Certamente, se eleita não concordará com a entrada da Argentina no Brics, como defende Lula. Mas não implodirá pontes com o Brasil, o que é importante para nosso país, pois a Argentina é nosso terceiro parceiro comercial, atrás apenas da China e dos Estados Unidos.

Se pensasse nos argentinos, o peronismo deveria buscar, desde já, apoiar Patricia Bullrich. Mas isso seria exigir muito de uma força política que, antes de tudo, sempre pensou em seus próprios interesses em detrimento aos do país. O mais provável é que aprofunde o seu ocaso, insistindo na candidatura Sérgio Massa, fadada a uma derrota humilhante.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 16/8/2023. 

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