O ministro da Defesa, José Múcio, e o general Tomás Paiva, comandante do Exército, estabeleceram uma estratégia para estancar o atual desgaste das Forças Armadas. Ela consiste em separar a instituição da ação de indivíduos, mesmo os de alto coturno como o almirante e ex-comandante da Marinha Almir Garnier. Esse critério se aplicaria em relação aos novos fatos revelados na delação do tenente-coronel Mauro Cid, segundo a qual Bolsonaro promoveu uma reunião com a cadeia de comando das três Forças para discutir uma minuta de golpe.
De forma precisa, Maria Fernandes Cristina, do jornal Valor Econômico, deu detalhes da reunião para impetrar o golpe, realizada em 24 de novembro de 2022, segundo a jornalista. Suas informações devem ter vindo de quem participou da reunião, provavelmente de trecho da delação de Cid, tal a riqueza de detalhes. O almirante Garnier, conselheiro de todas as horas de Bolsonaro desde que assumiu o comando da Marinha, teria manifestado, de pronto, seu apoio ao plano do então presidente.
Já o então comandante do Exército, general Freire Gomes, sem meias palavras teria rechaçado o golpe: “se o senhor (Bolsonaro) for em frente com isso, serei obrigado a prendê-lo”. O general estava respaldado pelos comandantes do Sul, Sudeste, Leste e Nordeste. Ou seja, por quem tem, de fato, capacidade e poder de mobilização da tropa. A firme posição da principal força sepultou o plano de um golpe com a participação ativa das Forças Armadas.
Na longa história de intervenção militar na vida política nacional, jamais um golpe logrou êxito sem a participação e liderança do Exército. Vem daí a decepção do ex-presidente com o Alto Comando do Exército, conforme fica claro em mensagens do celular do tenente-coronel Mauro Cid.
Não se trata aqui de enaltecer a postura do Exército, até porque, como disse seu atual comandante Tomás Paiva, “não fez mais do que sua obrigação”. Tampouco trata-se de subestimar a infiltração bolsonarista na tropa. Mas de reconhecer a existência de uma maioria legalista na cadeia de comando, responsável por manter as Forças Armadas, como instituição, à margem do golpe.
Até que ponto o almirante Garnier expressava a posição da instituição a qual comandava ou até que ponto sua posição era pura bazófia no seu afã de bajular Bolsonaro, ainda é um ponto a esclarecer. O atual comando da Marinha diz que a Armada não acompanharia Garnier se ele desse uma ordem golpista.
A despeito de existir, segundo o jornalista Marcelo Godoy, do Estado de S. Paulo, uma minoria de generais disposta a seguir o plano golpista, o legalismo se impôs até por fatores objetivos. As instituições da República estão muito mais resilientes, pesando, de forma decisiva para o fracasso do golpe, a firme posição do Poder Judiciário e do Legislativo, além da sociedade civil.
A situação internacional também é completamente diferente dos tempos da Guerra Fria. Em 1964, os Estados Unidos apoiaram o golpe militar de forma ativa e foram importantes para sua vitória. Em 2022, o governo de Joe Biden claramente ficou ao lado da democracia e mandou várias mensagens aos nossos militares sobre as consequências de uma aventura golpista. O atual comando do Exército demonstra ter noção dos tempos atuais, quando afirma que golpe é uma coisa inteiramente fora da época. Diríamos mais, difícil de obter êxito em um país complexo como o Brasil.
Nesse contexto, a estratégia de separar o joio do trigo, preconizada pelo ministro Múcio e o comandante do Exército, parece ser a mais adequada aos interesses nacionais. Ela visa a dois objetivos: contribuir para a reconciliação de um país que saiu das urnas dividido e cuja polarização permanece até hoje, e virar a página para que as Forças Armadas se dediquem, exclusivamente, à sua missão de defesa nacional. Como afirmou o general Tomás, a Constituição não lhes outorga o papel de poder moderador.
Passou a ser de interesse das próprias Forças a punição exemplar dos militares envolvidos na articulação golpista. Sem isso, será impossível virar a página e sua imagem continuará a se deteriorar. Bolsonaro e os militares que se envolveram em seus planos fizeram mal à imagem da instituição. Segundo pesquisa recente do Datafolha, 61% dos entrevistados consideram que oficiais das FFAA estiveram envolvidos em irregularidades no governo Bolsonaro.
Não se conhece, de todo, a extensão e profundidade da infiltração bolsonarista no estamento militar. O simples fato de um dos três membros mais altos de sua cadeia de comando ter apoiado o golpe já é uma evidência da gravidade. Passar a limpo e cortar na própria carne é pré-condição para as Forças Armadas se livrarem do manto de suspeição que paira sobre ela.
Não se deve cobrar apenas dos militares. Como sucessivamente se queixou o ex-ministro da Defesa Raul Jungmann, o Congresso Nacional furta-se de sua obrigação de debater a política de defesa nacional e qual a formação necessária a ser dada aos nossos militares e os valores a serem disseminados nas academias militares. O primado do Poder Civil não pode ser um exercício de retórica. Ele só será uma realidade se cumprir a sua obrigação de dar a diretriz às Forças Armadas. A omissão do Poder Executivo e do Congresso Nacional contribui para que o joio se misture com o trigo.
O país necessita das Forças Armadas capacitadas e equipadas para assegurar a defesa da nação, imbuídas de uma cultura democrática e que se reencontre com os brasileiros. Esse processo só logrará êxito se for conduzido em parceria com a cadeia de comando. Ou seja, com os militares e não contra os militares.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 27/8/2023.