E lá se foi a Margarida!

Marga, para os íntimos, mãe pra mim e pra Sueli, vó para a Giuliana, pro André e pro Adriano e bisa para a Nalu, o Thomás, a Liz e a Eva, partiu neste 20 de junho aos 102 anos para o outro lado deixando saudades e muita história pra ser relembrada.

Se fosse contar todas teria de escrever um livro com muitos volumes, porque afinal, viver mais de um século é presenciar a história ao vivo e em cores.

Assistiu a duas guerras mundiais, viveu na pele a Revolução Constitucionalista de 32, quando a soldadesca se entrincheirou no sítio onde morava, passou pela morte de quase todos os familiares – só restou um irmão dos oito filhos que Carlos e Maria produziram juntos – de presidentes, de Papas, de artistas (chorou quando morreu o seu preferido Tyrone “Povér”) e até da Rainha, viu o homem descer na Lua, assistiu pela TV aos terremotos que abalaram o mundo, tsunamis que destruíam cidades, viveu epidemias e sobreviveu a todas, com fé e garra.

Essa escorpiana de signo era na verdade um touro na vida. Nascida em Itatiba (SP), se mudou pra Souzas com a família de lavradores oriundi do Vêneto. Ainda meninota saiu de lá para trabalhar como babá na cidade de Campinas. Tempos depois, quando se mudaram pra Jundiaí a moça bonita das pernas grossas foi trabalhar numa tecelagem. E ali, quando a apito da fábrica de tecidos tocou anunciando o horário de almoço, conheceu o contra-mestre bonitão de nome Guilherme. Apaixonaram assim que seus quatro olhos verdes se encontraram. Começaram a namorar e logo se casaram. Juntos comemoraram as Bodas de Ouro e só não chegaram às de Diamantes porque um AVC deixou a saúde dele fragilizada e ele se foi depois de uma infecção pulmonar, a mesma que a levou ontem.

Margarida era “sveglia” como dizia sua nonna. Era tão esperta que acabou virando “professora” na escolinha rural onde fez o primário. Depois que completou os quatro anos de ensino básico, continuou frequentando a escola, já que tinha de levar seus irmãos menores. Não raro a professora a deixava tomando conta da classe e aí ela assumia o papel de psora. Sem a paciência de um educadora profissional e sem a sensibilidade de perceber que alguma criança poderia ser especial, se irritava com a menina que respondia “cinco” a qualquer pergunta. Ela escrevia um número na lousa e perguntava pra menina: que número é esse? Resposta: Cinnnnco. Escrevia uma letra qualquer e perguntava: que letra é essa? E a menina: Cinnnnco.

Sua esperteza nunca permitiu ser iludida ou passada pra trás. Golpistas que já tentaram enganá-la só levaram a pior. Tinha a resposta na ponta da língua para afastar qualquer malandro que quisesse se aproveitar de sua “ingenuidade”. Pobres deles.

A falta de uma educação escolar completa nunca fez dela uma ignorante. Sabia o básico do ler e escrever, mas sua formação nas áreas da Medicina, História, Política, Matemática, foi mesmo conseguida na escola da vida. Não incluí Geografia porque ela era péssima.nessa matéria. Às vezes queria me contar alguma notícia que tinha ouvido e se atrapalhava sobre o local do acontecimento: “Não sei se foi em Minas Gerais ou em Belo Horizonte”. A gente ria porque achava engraçado, mas isso era um nada comparado com o que sabia das coisas.

Depois de uma semana internada no hospital, ela foi liberada para continuar tratando a pneumonia em casa, com toda assistência médica necessária. Ficou razoavelmente bem, mas deixou de se alimentar e aí percebemos que estava entregando os pontos, mas sem perder a lucidez. No dia anterior à sua morte, disse: “Faltam cinco meses pra eu fazer 103 anos”. Ela nasceu no dia 19 de novembro de 1920, dia da Bandeira Nacional. Mas a bandeira que ela gostava mesmo de empunhar era a verde e branca do seu querido Palmeiras. Não perdia um jogo. Quando não passava na TV ouvia no radinho de pilha. Era fã do Dudu e sabia o nome de todos os jogadores. Vez ou outra “margaridava” quando os mencionava, porém. Quando o time trocou os Gabrieis, o Jesus pelo Menino, deu um nó na cabeça dela. No fim de um jogo ela me liga contando que o Palmeiras tinha vencido com gol do Menino Jesus.

Eu ri mas não estranhei. Essa era a Margarida!

No domingo nossa pequena família esteve com ela o dia todo. Estava quieta, respondia com um sim ou com um não às nossas perguntas, mas não queria conversar e nem mesmo demonstrar que pressentia seu fim,. Dura na queda, não permitiu que assistissemos à sua partida e nem que sua inquietação da madrugada monitorada por duas cuidadoras a levasse. Se acalmou, dormiu e não acordou mais.

21/6/2023

 

5 Comentários para “E lá se foi a Margarida!”

  1. Vera, ser filha de dona Margarida foi um privilégio. Abraço apertado.

  2. Preciosa homenagem que a filha fez à querida mãe. Uma obra prima em forma de texto.

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *