Distopia orwelliana

Quando esteve no Brasil para a posse de Lula, Gabriel Boric, presidente do Chile, deu uma declaração premonitória em entrevista à jornalista Mônica Bergamo da Folha de S.Paulo: “Combater a desinformação não pode significar uma espécie de distopia orwelliana de criar um Ministério da Verdade para quem está no poder definir o que é certo e o que não é”.

Referia-se, claro, ao livro 1984, de George Orwell, em que até as palavras perdiam o sentido. Assim, o Ministério da Verdade, encarregava-se de criar mentiras, reescrevendo a história para moldá-la na glorificação do “Grande Irmão”, o fictício ditador no romance.

O revisionismo histórico, ou melhor, a construção de uma história oficial, é um traço de governos autoritários ou populistas, sendo estranho a países onde a democracia é consolidada. Parte da premissa de que a história é ambígua, comportando várias interpretações. Por esse viés, a história deixa de ser uma ciência e se transforma em uma “visão ideológica” dos acontecimentos, adaptada ao projeto político de quem está no poder.

A verdade oficial é sempre a dos vencedores.

Lula está criando a sua com a tentativa de reescrever a história do impeachment de Dilma Rousseff, qualificando-o como golpe, como fez na sua visita à Argentina e ao Uruguai. A tese sempre foi defendida pelo PT como escudo aos desvios de conduta ética e do descalabro econômico do governo da então presidente.

É uma tese sem a menor aderência na realidade, uma vez que a ex-presidente perdeu seu mandato por meio de um processo de impedimento no Congresso Nacional cuja constitucionalidade foi confirmada pelo Supremo Tribunal Federal. Mas como a ninguém é negado o direito de não ser réu confesso, entende-se que o PT monte sua versão do impeachment de Dilma, para não ficar mal perante a história.

Até aí é do jogo. Mas quando a tese do golpe é assumida pelo presidente da República em viagem oficial e reproduzida em site governamental, como o da Empresa Brasileira de Comunicação, estabelece-se a confusão entre o público e o privado, entre partido e estado. Lula não está apenas olhando para o retrovisor. Está criando, por meio da desinformação, e aqui vai a distopia apontada por Gabriel Boric, uma história oficial destinada a gerações futuras. Sem falar no desrespeito que isto significa: afinal, o STF concluiu pela legalidade da decisão do Congresso Nacional.

O risco de um Ministério da Verdade petista não está apenas na reinterpretação da história. O Ministério da Justiça anuncia a edição de um Pacote da Democracia, no qual postagens que o governo julgue como incitação à violência seriam criminalizadas automaticamente, sem o pronunciamento da Justiça.

De fato, o sentido das palavras vem sendo alterado. O Pacote da Democracia embute um viés que pode cercear a liberdade de expressão, enquanto a Secretaria de Comunicação da Presidência da República cria um “Departamento de Liberdade de Expressão” com vistas à fiscalização de peças de “desinformação”. Na mesma linha, a Advocacia Geral da União criou a “Procuradoria de Defesa da Democracia”, sob o pretexto de combater a desinformação contra políticas públicas.

Para além da sanha punitivista que pode ensejar limitações ao exercício das liberdades públicas, reside aí o perigo alertado por Boric, com o governo avocando para si a missão de definir o que é certo e o que é errado, no melhor estilo orwelliano. A concentração nas mãos do Executivo do poder de definir o que é “desinformação” e o que é uma “opinião” levará, inevitavelmente, a distorções.

As declarações de Lula sobre o impeachment de Dilma não são um caso isolado. A onda revisionista em curso vem levando à “reinterpretação” da transição democrática de 1985, com uma certa dose de simpatia pelo caminho seguido pelos argentinos, que puniram seus militares do período da ditadura.

Ne onda ignora-se que cada país da América do Sul tem suas peculiaridades e trilhou caminhos diferentes para superar suas ditaduras. No caso brasileiro, a transição possibilitou o maior período democrático de nossa história republicana, permitindo que o Brasil seguisse adiante. Nem mesmo a intentona da extrema-direita de 8 de janeiro empana os méritos da nossa transição iniciada com a eleição de Tancredo Neves.

Distopias orwellianas não apagam o veredicto da História. E ela já deu seu parecer sobre 1964 e também sobre a destituição de Dilma.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 1º/2/2023. 

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