As raízes de Rondon

Milico pra mim sempre foi o marechal Cândido Rondon. Era engenheiro e sertanista, um amigo dos índios – como assim eram chamados em sua época, hoje denominados indígenas, que é a forma correta. Foi dele a criação, em 1910, do órgão oficial que muito depois receberia o nome de Fundação Nacional do Índio, substituindo o original Serviço de Proteção aos Índios. Em suas várias missões Brasil afora, Rondon foi um desbravador do bem, jamais um destruidor.

A República era uma coisa nova, tinha só 20 anos. Os militares golpistas de 1889 em diante já tinham ficado para trás. A República era, finalmente, civil. Os militares ainda eram influentes, volta e meia se rebelavam em quarteladas, mas o poder, mal ou bem, era civil. E Rondon despontava como um militar construtivo e humanista, festejado pelos índios e pelos brancos.

Quanta diferença para os milicos dos anos 50 e 60 do século 20, que voltaram a ser golpistas, quando se esperava que se ativessem a suas funções constitucionais. E hoje, depois de uma ditadura feroz imposta em 1964 e mantida a ferro e fogo até 1985, quando caiu de podre, volta-se a discutir o papel dos milicos numa democracia, finalmente reconquistada em 1988.

As Forças Armadas brasileiras formam um contingente considerável de 350 mil fardados, que custam ao país os olhos da cara, mais do que os orçamentos da Educação e da Saúde juntos. Em tempos de paz, especialmente se lembrarmos que a última guerra com nossos vizinhos foi contra o Paraguai, no século 19, trata-se de uma exorbitância para arregalar os olhos de qualquer cidadão minimamente informado.

Toda essa força se manteve durante décadas porque era de interesse dos Estados Unidos ter um aliado ao sul do Equador com exército próprio e forte. Nossas forças eram paparicadas com armamento de segunda, mas ainda ativo e bom, e treinamento militar apurado para as patentes mais altas, que se encarregavam de reproduzir aqui entre os jovens oficiais e a soldadesca. A geopolítica mandava no pedaço. Foram os gringos, aliás, que ensinaram aos nossos oficiais como torturar sem deixar marcas.

Hoje é tudo diferente e, com certeza, o Brasil não precisa de 350 mil soldados e oficiais. Um terço disso estaria de bom tamanho para tomarmos conta de nossas fronteiras secas e molhadas. Temos milicos demais onde não precisamos e de menos onde mais precisamos – nas fronteiras e na Amazônia, para enfrentarmos com força as grandes organizações criminosas que infestam a floresta para disseminar o garimpo ilegal, o narcotráfico, o desmatamento para grilagem de terras e exportação ilegal de madeira branqueada para passar como legal.

Tudo sob os auspícios, ao menos nos últimos quatro anos, de um governo lotado de milicos sem função para o serviço público, mas importantes para militarizar as áreas da administração que interessavam ao napoleão de hospício sentado na cadeira presidencial. E as forças se prestaram a isso gentilmente, com um olho nos gordos salários adicionais e o outro nas oportunidades que se abriam dentro de estatais suculentas e sem mais controles institucionais. Complience zero, negócios mil.

Esta, todos sabemos, é a melhor maneira de corromper as forças de segurança e fazer com que elas trabalhem não para o bem comum, mas para os interesses particulares e políticos do governante de plantão e seu grupo de asseclas. O castelo de napoleão veio por água abaixo na eleição de 2022 e seus fiéis otários se enterraram até o pescoço na papagaiada de 8 de janeiro de 2023.

Será preciso, agora, redesenhar as forças, repaginar tudo, desbozificar suas estruturas,  enxugar ao máximo o orçamento e destinar-lhes outras tarefas, as de que realmente necessitamos para melhorar a vida dos brasileiros, dos povos originários aos povos de hoje, todos migrantes que aqui chegaram ao longo da história, vindos de onde suas famílias não tinham mais o que comer nos seus países de origem e aqui fizeram suas vidas, assentando-se sobre as terras dos outros que aqui viviam havia séculos e eram os verdadeiros e únicos donos do que os invasores portugueses chamaram de Brasil.

Não sei se o governo Lula terá força para isso, mas alguém precisa começar e dois dos novos ministérios criados estão aí justamente para isso, o da negritude e o dos povos originários. Ser amigo dos negros e dos “índios” nos recolocaria de volta às raízes que o mato-grossense Cândido Mariano da Silva Rondon plantou enquanto viveu, de 1865 a 1958.

Esse ilustre militar me faz pensar que se houvesse um único general de sua estirpe no Brasil de hoje, não estaríamos vendo a barbárie genocida que se instalou nas terras Ianomâmis de 2019 para cá.

Francamente, o Brasil é um país de desgraçados. Palavra que emprego com todos os sentidos que ela tem ou possa ter. País em que os heróis do passado não tiveram sucessores e jazem em nossa memória como seres de outro mundo.

 Nelson Merlin é jornalista aposentado. 

2/2/2023

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