Cidadão do mal

A omissão – e até estímulo – de integrantes da cúpula da Polícia Militar do Distrito Federal (PM-DF) diante dos ataques golpistas do dia 8 de janeiro; policiais que atiram para matar bandidos e inocentes; um pai que aponta sua arma para professoras acusando-as de promover ideologia de gênero. Os eventos, aparentemente desconexos, giram em torno da influência perversa do bolsonarismo na sociedade. Não só sobre os fardados, mas também dos que o ex costuma chamar de “cidadão de bem”.  

O caso de Ribeirão Preto é simbólico. Armado, o pai de uma aluna de uma escola municipal sentiu-se no direito de entrar nas sala das professoras e ameaçá-las. Reclamou que elas não tinham preparado uma lembrancinha em homenagem aos dias dos pais e as condenou pela lição de casa sobre o papel da mulher na sociedade. Mais tarde, ao falar com a reportagem do jornal Folha de S.Paulo, disse ter registro da arma e que é CAC (Caçadores, Atiradores e Colecionadores), categoria usada por Bolsonaro para armar a população civil.

Em uma completa inversão de valores, o pai, cujo nome foi mantido em sigilo para preservar a filha, chegou a ser defendido nas redes bolsonaristas como alguém que buscava proteger sua família contra a doutrina ideológica da escola. Um “cidadão de bem” que crê ter o direito de sacar a sua arma impunemente.

As questões de gênero, com forte apelo homofóbico, aliadas às de direitos humanos também funcionam como chamariz no caso de policiais. Pesquisa realizada em 2020 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontou que 41% dos policiais de baixa batente (soldados, cabos, sargentos e subtenentes) estavam alinhados ao bolsonarismo, com forte interação nas redes sociais. “Quase todos os policiais militares são eleitores de Bolsonaro e apaixonados por ele”, disse o ex-comandante do Bope, sociólogo e autor do roteiro do filme Tropa de Elite, Rodrigo Pimentel, em entrevista ainda antes das eleições.

Na linha do “bandido bom é bandido morto” ou do “atira na cabecinha”, tese assassina introduzida pelo bolsonarista e ex-governador do Rio, o impichado Wilson Witzel, Bolsonaro e os seus conseguiram ampliar apoio não só nas tropas quanto no público. No recente massacre do Guarujá, batizado de Operação Escudo, na qual a polícia matou 18 – vários inocentes, tratados pelo governador bolsonarista Tarcísio de Freitas como “dano colateral” -, dados da pesquisa Genial/Quaest apontam que embora 43% rejeitem a ação policial, metade dos votantes em Bolsonaro defende a matança.

Nos altos escalões, a atuação dos dirigentes da PM-DF escancara a opção golpista da cúpula, que teria, de acordo com a Procuradoria-Geral da União, facilitado o acesso dos vândalos aos prédios-sede dos Três Poderes. A troca de mensagens entre coronéis da linha de comando é estarrecedora, com indicações de corpo mole, de fé e torcida para que o levante antidemocrático obtivesse sucesso. Aqui, o estímulo ao golpe vai desde a quantidade de privilégios obtidos à manutenção do poder sob as hostes bolsonaristas.

Privilégios também fizeram a cabeça (e os bolsos) das gentes das Forças Armadas. Depois da ditadura, nunca elas tiveram tamanha representação no governo quanto no período do ex. De acordo com o Tribunal de Contas da União, em 2020, 6.157 militares da ativa e da reserva ocupavam cargos civis, número maior do que o dobro de 2018, no governo Michel Temer, quando 2.765 prestavam serviço ao governo. Mais: dados do Ipea, coletados em 2022, apontam o aumento exponencial da remuneração de militares em cargos de confiança, em alguns casos ultrapassando a casa dos R$ 100 mil ao mês.

As regalias a militares, algumas delas com apoio do Congresso, como o regime especial de aposentadoria, incluíram o decreto de Bolsonaro autorizando o oficialato a somar recebimentos acima do teto constitucional, o que é vedado a civis.

Diante de tantos mimos nem era necessário ter identidade ideológica para apoiar a manutenção de Bolsonaro no poder. Bastaria pragmatismo. E, claro, menos aloprados como os do Val, Zambelli, Wassef, Delgatti, Cid e cia.

Era absolutamente improvável um golpe com tantas trapalhadas de tantos incompetentes. Mesmo assim, a contenção se deveu à integridade da maior parte das Forças Armadas e das polícias, que mesmo fardadas e armadas não se arvoraram na ilegalidade. Hoje, embora Bolsonaro seja carta fora do baralho – inelegível e sob pressão penal -, o vírus inoculado por ele persiste. Ainda não há remédio seguro para a cura dos males do bolsonarismo. O pai de Ribeirão Preto é prova disso.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 20/8/2023. 

 

Um comentário para “Cidadão do mal”

  1. Simplesmente magistral o texto de Mary Zaidan. Este leitor não tinha lido, até agora, nada tão consistente e bem argumentado, em tão pouco espaço, quanto o que está ali.
    Parabéns!

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