Boa companhia

O presidente Lula não está mais sozinho em sua batalha contra os juros altos. Inflação causada por anomalias no lado da oferta não se combate com aumento de juros. A definição é do prêmio Nobel de Economia Joseph Stiglitz, para quem o presidente Lula tem toda razão de se preocupar: elevação de juros nessas situações são desnecessárias, ilógicas e levam o país para a recessão, com graves consequências para a produção, o emprego e a renda da grande maioria da população.

Juros estratosféricos viraram moda na economia brasileira e lembrei disto outro dia aqui mesmo, neste 50 Anos de Textos. Só interessam aos donos da banca, aos acionistas da banca e aos operadores da banca – tudo é a banca! –, que enchem suas burras com gordas comissões, dividendos e lucros exorbitantes.

Convivi durante seis anos com um banqueiro, já falecido, e na época tornara-se principal acionista do jornal cuja redação eu dirigia, a convite dele, em Londrina, Paraná. Tínhamos conversas recorrentes sobre juros e políticas econômicas voltadas ao crescimento do emprego e da renda. Nessa época, era senador da República, depois foi ministro da Indústria e Comércio e, no segundo mandato de FHC, ministro da Agricultura.

José Eduardo de Andrade Vieira era inimigo declarado dos juros altos. Não são bons nem para os bancos, que acabam formando filas quilométricas de inadimplentes. Mais de uma vez o banco que ele presidia, o Bamerindus, zerou integralmente dívidas de agricultores no Paraná e outros estados porque não conseguiam pagar ao banco os empréstimos que faziam para tocar suas atividades no campo. No Senado, no Governo e no Banco Central arrumou pencas de inimigos, mas não se importava. Ele tinha a convicção de que a inflação no Brasil não era de demanda – cujo excesso causaria inflação ante a inelasticidade da oferta, como dizem os economistas – mas, sim, de oferta insuficiente para a atender a demanda de uma população crescente e cada vez mais carente.

Para termos juros baixos tínhamos que produzir mais, e como fazer isso se os juros altos demais impedem o crescimento? A armadilha dos juros é essa. O remédio é perverso e a dose exagerada mata o paciente. Ele sentiu isso na própria carne, quando seu banco faliu. Não por má administração, mas por juros escorchantes cobrados de empréstimos que o próprio banco fez para dar vida a um sonho, que vinha de seu pai, de ter uma fábrica de papel. O Bamerindus fez a Inpacel e os dois foram à bancarrota. Os juros pagos pela fábrica, gigantesca, eram maiores do que os lucros do banco.

Se a inflação vem pelo lado da oferta, aumentar os juros é como jogar gasolina na fogueira. Vale uma explicação. O ar que respiramos é de certa forma infinito e sua oferta não é problema. Em condições normais de superfície, a oferta de ar é elástica, o que quer dizer que tem ar para todo mundo e a qualquer momento. Isso não é assim com alimentos, moradia, saúde etc, que dependem de oferta e ela pode ser precária. Por isso mesmo, o ar não é considerado um bem econômico nas Ciências Econômicas, que tratam exatamente do que não é abundante, do que é escasso, perecível e pode nos faltar. Isso tem um preço – enquanto o ar não tem. E tudo que tem um preço, tem um juro embutido. Se há falta do produto, o preço sobe e o juro vai com ele. Se falta soja, o preço sobe e o juro para financiar a compra de sementes para plantar a soja sobe junto. E por aí vai.

O juro é o preço do dinheiro. Se há muito dinheiro na praça, o juro será necessariamente baixo. E o inverso é verdadeiro. Mas quando há muito dinheiro na praça, tem de haver uma oferta equivalente de produtos para consumir esse dinheiro. Se ela for menor, os preços vão subir e o juro vai junto. Poderíamos ter uma inflação desenfreada. Se ela for maior, havendo então uma oferta em excesso com relação à demanda, os preços vão baixar e o juro vai junto para baixo. No limite, teríamos uma deflação com estagnação econômica. Mas essas situações são temporárias, pois logo os produtores irão aumentar ou reduzir a oferta, conforme a demanda se torne alta ou se reduza. No final das contas, a Economia sempre tende ao equilíbrio.

Um governo em qualquer sistema econômico bagunça tudo se jogar os juros artificialmente para cima ou para baixo, pensando com isso em normalizar os mercados de oferta e procura. Em situações difíceis, melhor é não mexer nos juros e lançar mão de outros instrumentos para regular as ações dos agentes econômicos. Tem que meter na cabeça que o juro está dentro do preço e não fora dele. Se a oferta cai, reduzir ou retirar os impostos de importação é o melhor remédio. Se o produto já está caro no exterior, zera-se o imposto e banca-se até mesmo o frete para reduzir ainda mais o preço.

Se, ao contrário, é dinheiro o que está faltando, Bancos Centrais têm reservas para irrigar a praça, fazer o custo do dinheiro cair por sua momentânea abundância e restabelecer o equilíbrio. Governos também podem ter políticas de renda móveis e elásticas, injetando dinheiro nos bolsos e bolsas da população para ativar o consumo e estimular o crescimento da oferta de produtos. É o que se faz através dos programas de transferência/distribuição de renda em muitas partes do mundo, não só aqui. O viés ideológico de direita sobre isso é estúpido. Não se faz distribuição de renda para enriquecer os pobres, mas para estimular a produção dos ricos – que, como se sabe, detêm os meios de produção numa economia capitalista. Com mais produção os preços baixam e todos vivem melhor.

A consequência de uma distribuição de renda bem-feita não é a criação de parasitas, como gritam histéricos os batráquios da direita, mas justo o contrário: é a criação de consumidores que vão melhorar suas próprias vidas e a dos ricos. Sem inflação, sem carestia. Programas como Bolsa Família, Renda Mínima e Minha Casa Minha Vida (transferência), além de IR progressivo (distribuição), não são benesses, mas instrumentos de cidadania e desenvolvimento para todos.

Stiglitz não entrou nisso em sua entrevista à BBC News Brasil. Mas com certeza o professor sabe disso e muito mais.

Nelson Merlin é jornalista aposentado.

3/3/2023

 

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