Aí, mocinho!!! Bang-bang!

Tenho uma fixação infantil pelos filmes de cowboy e pelos heróis do cinema americano, fantasiando e glorificando um bom trecho do século XIX em que o Oeste era ocupado. Estaria sendo civilizado, na opinião deles. Dominado, por certo.

Meu pai apresentou-me ao gênero, levando-me para que visse um filme com Tom Mix (1880-1940, na foto acima) e seu cavalo branco. Depois, outro cowboy: Hoot Gibson (1892-1962). Embora sem grandes simpatias por tais “mocinhos”, mas adorando as cavalgadas, os tiroteios e as brigas, com direito a beijar a mocinha no final, fiquei fã do gênero. A roupagem dos heróis, estilizada, rendeu-me algumas fantasias para o carnaval boladas por meu pai. Ele se realizava ao vestir o pequeno menino que amava. Amar os westerns foi uma primeira lição.

O cowboy, um vaqueiro tão vaqueiro quanto os de todo o mundo em que existam bois e vacas a serem cuidados, passou a ser um herói. Ou um “bandido”! Aqui em Pindorama, é claro que os mesmos vaqueiros de Norte a Sul também construíram uma saga. Pena, Hollywood os ignorou. Nossos cangaceiros nada lhes deviam em termos de audácia e crueldade. Ainda bem que Glauber Rocha e outros lembraram deles,

Voltando para a Califórnia e para as lendas dos filmes heróicos, a distância entre o vaqueiro valente e grosseiro, ultra religioso, e o “pistoleiro”, o “ás do gatilho”, tornou-se pequena. Um vaqueiro não se importa por envelhecer ganhando a vida de forma dura e honesta. O homem que é rápido no gatilho tem pressa em enriquecer. Passa a alugar sua pontaria, sua coragem, sua crueldade para roubar diligências, assaltar bancos e, eventualmente, matar índios, brancos e outros “gatilhos-relâmpagos”. Mercenários, homens da lei, enérgicos sheriffs combatiam foras-da-lei, ou por eles eram corrompidos. Raramente amedrontados.

As histórias passaram por mãos de bons e medíocres escritores. Um dos bons, senão o melhor, foi Zane Grey, um prosaico dentista nascido no século XIX que se notabilizou com romances passados no Oeste americano. Teve muitos romances adaptados para o cinema e é, de certa forma, o pai dos bang-bangs.

A saga tornou-se rica e correu as prateleiras dos filmes B até os filmes cult.

Meu estômago era ótimo para as variantes do tema e qualquer espectador atento sabia mais ou menos o drama a assistir, com cenários de pouca variação. As pradarias, os montes por vezes nevados, as galopadas e os tiroteios trocados entre velozes cavaleiros ou índios (comanches, apaches, sioux, etc) eram presenças certas. Os salões de bares, quase bordéis, cenários de brigas e matanças.

Embora a escravidão oficial de negros tenha persistido até o século XIX, a Guerra da Secessão entre nortistas e sulistas foi cenário constante daqueles filmes. Contudo, é importante frisar: negros não eram personagens naqueles primórdios dos westerns. Omitidos ou esquecidos? Hoje, em resgate tardio, encontramos ótimos atores negros feitos paladinos do bem e da ordem. Marcaram nossos dias Denzel Washington e Jamie Fox, “mocinhos” para ninguém botar defeito. Mas teria havido, naquele Oeste (o Far West, que virou faroeste), negros com ações deste tipo? Ou já seriam banidos da sociedade branca?  Meu conhecimento da História da América é limitado e, assim, fujo da resposta e não insisto na pergunta. Fica o registro.

Volto à saga e desenvolvo a minha observação.

O cinema americano produziu obras maravilhosas e muitas outras inexpressivas. Os filmes westerns, sem dúvida, entre repetições e histórias batidas, elogiavam a coragem dos pioneiros, justificavam a matança dos índios com ressalvas para as tribos que acabaram enjauladas nas “reservas”. Os legítimos donos da terra, selvagens, aprenderam a usar os rifles, mais eficazes dos que suas flechas e lanças. Nos filmes, eram cruéis, traiçoeiros e matadores sem justificativas. Mais perigosos do que os negros. Eram, contudo, peles-vermelhas. Ironicamente, a cor não seria das “piores”.

Além do já citado Zane Grey, americano, outro escritor, um autor alemão chamado Karl May, que inventou heróis em todas as latitudes, teve grande prestígio em seu país (admirado pelo execrável Adolf Hitler, quando jovem. Argh!). A indústria cinematográfica alemã realizou alguns filmes com os personagens viris e bons atiradores, espalhados pelo mundo e, em especial, aventuras no Oeste americano. Sua criação não racista nesta área é o heróico chefe pele vermelha Winnetou. Penso que Hollywood não apreciou Karl May, por razões óbvias.

Pelas mãos de um amigo de juventude, li as versões desses livros em nossa língua. Mas o mundo girou, a guerra de 1939-1945 mexeu nos conceitos e crenças anteriores e só então parece ter brotado na cabeça dos cineastas não mais caber o herói que mata e não dá bola para estes feitos. Permaneceriam o sentido de honra, de coragem, lealdade e valentia. Consciência. Mudanças!

Sem a preocupação de entrar nos detalhes técnicos, tentarei falar de películas americanas que, a meu ver, mudaram bastante a trajetória dos valentes homens do Oeste. É claro que o “mocinho” jamais seria um bandido, porém poderia teria crises de consciência.

Matar ou Morrer/High Noon

De Fred Zinnemann, 1952

Com Gary Cooper e Grace Kelly

Neste maravilhoso quase ensaio cinematográfico, o diretor mostra um xerife cônscio de seu dever que, no dia de seu casamento, recebe um recado: um matador que havia sido preso por ele voltava à cidadezinha, com o bando, para matá-lo. O trem chegaria às 12 horas, em ponto – High Noon. Ou seja, dali a uma hora e meia. Todos os que estão em volta dos nubentes recomendam que o casal viaje imediatamente para sua lua de mel, fugindo aos ameaçadores criminosos. Embora hesitante, o homem da lei sai com a bela mulher em sua pequena sege. No caminho, contudo, a consciência o adverte de que será lembrado como um covarde. A bela canção que faz o fundo musical lembra, com voz angustiante: “… ou no meu túmulo jazerá um covarde…”

O homem da lei decide então retornar e enfrentar o bando, ignorando angustiado as súplicas da esposa que, afinal, diz que o abandonará. O título da  canção é “Não me abandone, querida” – e a letra especifica: “Não me abandone, querida, neste dia do casamento”.

Na cidadezinha, o xerife busca apoio, mas ninguém se oferece ou tem coragem para enfrentar os pistoleiros. O seu vice negocia: só o ajudará se o superior lhe passar a estrela que o identifica, ou seja: abandonar o cargo que lhe fora confiado. Fugir ao dever? Jamais. Os homens lutam em um galpão e o titular acaba por nocautear o ambicioso auxiliar. Fica, assim, desguarnecido de um forte aliado, cuja ambição supera o respeito. Não faz parte do rígido código de ética do xerife.

Um notório bêbado da cidade (Lon Chaney Jr) apresenta-se ao xerife para ajudá-lo. É respeitosamente descartado, pois a lealdade e a coragem não superariam sua ruína física! Os demais, porém, acovardados, se escondem e deixam o homem da lei desamparado.

A história é contada em exatos 85 minutos. A tela mostra, em rápidas imagens, os mostradores dos relógios.

Chegados os malfeitores, estratégias do xerife permitem que ele os vá eliminando.  Quando vê sua arma descarregada, defronta-se com o chefe da gangue e percebe que ali poderia se acabar sua corajosa vida. O bandido vai disparar quando recebe um balaço nas costas que o mata no mesmo instante. Quem o matou? A câmara mostra o rosto decidido e assustado da jovem esposa, que acabou por lutar ao lado do marido, da lei e do seu amor.

O tiro pelas costas transgredia a ética dos heróis. O vilão desarmado jamais levaria um tiro. Quando muito, uma surra.

Terminada a refrega, o xerife vai deixar a cidadezinha. Não apenas para a lua de mel. Aclamado pelos medrosos que o abandonaram, ele arranca a estrela da lei e a joga no chão com desprezo. Toma as rédeas dos animais e, ao lado da fiel esposa, abandona a cidade.

Um herói diferente, humano, que ama e odeia. Supera o medo, ajudado pelo amor. Em sua tumba não estará um covarde.

A meu ver, uma das obras-primas da cinematografia americana.

Maio de 2023

Helio Brasil, carioca, nascido em São Cristóvão, Rio de Janeiro, em 1931, é arquiteto aposentado; foi professor na Santa Úrsula, Estácio, UFRJ e UFF, e publicou, entre outros livros, o romance “A Pele do Soldado”.

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