A modernização do Estado sob ataque

Só na segunda metade da década de 90 o Brasil iniciou um movimento de modernização do Estado, associado à estabilidade econômica. A construção do arcabouço institucional responsável por essas duas conquistas exigiu muito esforço e energia política. Resistências das mais diversas tiveram de ser enfrentadas e interesses incrustados no aparato estatal – entre eles o corporativismo e o patrimonialismo –  tiveram de ser deslocados de suas casamatas.

Hoje ninguém defende a volta do câmbio controlado, mas a gritaria foi grande quando passou a ser flutuante. Dizia-se, à época, que o governo de Fernando Henrique Cardoso estava se rendendo aos ditames do FMI e abria mão de usar a valorização da moeda brasileira como forma heterodoxa de controle da inflação.

Até o final do século 20, o Brasil também não adotava a política de meta da inflação. São contemporâneas a essas conquistas de modernização do Estado a adoção do superávit primário como âncora fiscal e a lei de Responsabilidade Fiscal. Antes, imperava a cultura da gastança sem limites, por parte do governo.

O saldo das agências reguladores é altamente positivo. Ninguém em sã consciência deveria ignorar sua contribuição para tentar desfigurar o seu papel. Não é o que pensa o deputado Danilo Fortes, autor de uma emenda que introduz interferência política em áreas técnicas das agências.

Em 2003, Luiz Inácio Lula da Silva recebeu de FHC uma economia estabilizada e um Estado em processo de modernização. Teve o mérito de, no primeiro mandato, manter os bons fundamentos que estavam dando certo. Aliás, chegou a aumentar a meta do superávit primário, quando Antonio Palocci comandou o Ministério da Fazenda.

Os mais recentes avanços institucionais foram a Lei das Estatais e a autonomia do Banco Central. O primeiro se tornou um obstáculo para o loteamento político que, no passado recente, levou a escândalos como o do Petrolão. Já a autonomia do BC é essencial para blindá-lo de injunções políticas na definição de metas da inflação e nos remédios necessários, incluindo taxa de juros, para conter tendências inflacionárias.

Coincidentemente ou não esses dois avanços estão sob fogo cerrado. Há um forte movimento no Congresso para alterar a Lei das Estatais, com vistas a torná-la mais “flexível”.

O Lula do terceiro mandato assume o governo com uma postura bem diferente da que adotou no primeiro. Por enquanto são apenas palavras. Nem por isso menos preocupantes. Além de demonizar o mercado e alguns empresários – tal como o bem sucedido Jorge Paulo Lemann -, demonstra um especial furor contra a autonomia do Banco Central.

Diante da possibilidade de ter sua popularidade afetada pelo baixo desempenho da economia no primeiro ano do seu novo mandato, volta suas baterias contra a meta da inflação e a taxa de juros. No seu entendimento, as metas da inflação de 3,5% para este ano e 3% para 2024 deveriam ser revistas para cima, para propiciar um maior crescimento econômico.

A ideia de aceitar preços mais altos em nome do crescimento não é nova. Já nos anos 50, Inácio Rangel defendia a tese de financiar a industrialização com a inflação.

Há quem ganhe e quem perca com o aumento da inflação. No rol dos ganhadores, o Estado, com o aumento da arrecadação pública, e investidores que aplicam em renda fixa. No dos perdedores, aqueles que comprometem maior parcela de sua renda com o consumo. Ou seja, a maioria dos brasileiros.

Há uma estratégia do Banco Central na definição da meta da inflação. Seu objetivo é trazê-la para o patamar dos países emergentes, em particular dos nossos vizinhos Chile, Colômbia e México, na casa de 3% ao ano. Ao se voltar contra tal, Lula, em última análise, põe em xeque a credibilidade da política de meta da inflação e, por tabela, do Banco Central. Com um agravante: gera instabilidade, retroalimentando a expectativa inflacionária – em escala ascendente há oito semanas – prolongando, assim, o ciclo de juros altos.

O caminho para trazer os juros para patamar mais baixo sem provocar inflação é o Brasil persistir na sua saga pela modernização do Estado, avançando nas reformas necessárias, como a tributária. E definindo uma nova âncora fiscal, substitutiva ao teto de gastos arrombado sucessivamente pelos governos.

A equipe econômica, por meio de declarações do ministro da Fazenda Fernando Haddad, dá sinais de comprometimento com tais objetivos. Mas, ao contrário das expectativas, ele não parece ter a mesma influência de Palocci.

Hoje o ambiente é outro e o presidente cria uma muralha da China entre a responsabilidade fiscal e a responsabilidade social. Ameaça pôr fim à autonomia do Banco Central quando “esse cidadão” deixar de ser o seu presidente – grosseria desnecessária a Roberto Campos Neto. Fala em revogar privatizações.

Se esse for o caminho, o Brasil navegará veloz rumo ao retrocesso, jogando fora as oportunidades de retomar, com ímpeto, a necessária modernização do Estado.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 8/2/2023.

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *