A atuação da Enel após o vendaval da sexta-feira, 3/11, que deixou mais de dois milhões de pessoas sem energia na Grande São Paulo, foi uma lamentável, pavorosa demonstração de incompetência – até numa área que não é a atividade fim da distribuidora, mas é estratégica, básica, a comunicação social.
Já no sábado tudo o que a empresa conseguiu comunicar à população era que os problemas só estariam totalmente resolvidos na terça-feira, dia 7.
Mas meu Deus do céu e também da Terra: de sexta à tarde até a terça são três dias e meio. Mais de 80 horas sem energia, a comida estragando nas geladeiras e freezers apagados, o banho gelado – isso para quem não sofreu também falta d’água por ausência de bombeamento.
Na noite de domingo, mais de 48 horas depois, cerca de 700 mil endereços continuavam sem energia. 700 mil casas de famílias e/ou empresas – inclusive, claro, armazéns, quitandas, bares, restaurantes, açougues.
E nada de comunicados na televisão, no rádio, nos sites dos jornais explicando em detalhes o que estava sendo feito, por que estava demorando tanto, quantas árvores caídas ainda faltava a Prefeitura retirar das ruas para as equipes da Enel fazerem o trabalho de religamento dos fios.
Uma incompetência descomunal – provavelmente a mais gigantesca incompetência de uma concessionária de serviço público já ocorrida na maior região metropolitana do país.
O que deveria ter sido feito, o que deve ser feito no futuro para evitar a repetição de tal calamidade, quais erros cometeu a Prefeitura, o governo do Estado – tudo isso são questões importantíssimas, mas este texto aqui não pretende falar delas.
Queria me concentrar em um efeito colateral perverso da incompetência da empresa controlada por multinacional italiana: o fato de parcelas da esquerda – o lulo-petismo à frente – estar usando a tragédia para dizer que é tudo culpa da privatização.
Pelo discurso deles, tudo, tudo, tudo na geração e distribuição de energia em São Paulo sempre foi uma maravilha, uma perfeição, porque era o Estado que cuidava do assunto. Privatizou, e aí ferrou.
Isso é mentira. Falsidade. Manipulação.
Eis aqui alguns fatos básicos.
A distribuição de energia na Grande São Paulo só foi estatal entre 1981 e 1998.
De 1899 até 1981, o serviço de produção e distribuição de energia coube à Light São Paulo – São Paulo Tramway, Light and Power Company, uma empresa privada de capital canadense. O contrato de concessão da Light com o governo federal, assinado no início do século XX, com duração de 70 anos, venceu no final da década de 1970.
O governo militar estatizou a Light. O governo Paulo Maluf constituiu a Eletropaulo, empresa estadual.
Nos anos 1990, na mesma época das grandes privatizações do governo Fernando Henrique Cardoso, a gestão Mario Covas criou em São Paulo o PED – Programa Estatual de Desestatização, a cargo do então vice-governador Geraldo Alckmin, para iniciar o processo de privatização de diversas empresas estatais paulistas, além de trechos de rodovias e ferrovias.
Grande demais para ser privatizada de uma vez, a Eletropaulo foi dividida em quatro empresas menores. Uma delas, a Eletropaulo Metropolitana, ficaria responsável pela distribuição de energia elétrica a 24 municípios da Grande São Paulo.
No leilão em abril de 1998, a Eletropaulo Metropolitana foi arrematada pelo consórcio Lightgás, formado porː AES Corporation (11,46%), Houston Industries Energy (11,46%), Électricité de France – EDF (11,46%) e Companhia Siderúrgica Nacional (7,32%).
Em 2001, as ações da Houston Industries e da CSN foram vendidas para a AES Corporation, que passou a controlar a empresa, rebatizada de AES Eletropaulo.
A AES Eletropaulo foi adquirida em 4 de junho de 2018 pela Enel Brasil, empresa formada aqui pela multinacional italiana Enel S.p.A.
A incompetência é da Enel. Não tem nada a ver com empresa privada ou empresa estatal.
Como dizia o título original de um western hoje pouco conhecido dos anos 1960: “The Singer Not the Song”. A culpa é do cantor, não da canção. O erro pode ser do padre, do ministro, do rabino, do mulá – não da religião.
A incompetência é de uma empresa específica – que, por acaso, é privada.
Ou vão dizer que a Central do Brasil, a RFFSA, a Companhia Telefônica Brasileira, sempre foram perfeitas, maravilhosas?
7/11/2023
Muito bom e com muita clareza de argumentos!!!
Excelente texto. Necessário também salientar que o Poder Público, no caso representado pela Prefeitura Municipal de São Paulo e pelo Governo do Estado de São Paulo, falham em sua responsabilidade de fiscalizar a concessão de serviço público de tamanha relevância para a população. Além, é claro, do descaso com as árvores da Cidade. Enfim, fica aqui o registro que não vamos nos esquecer, nas próximas eleições, desses (e outros) eventos do descaso dos Governos Municipal e Estadual.
Com atraso, mas com atenção e admiração, leio seu emocionante relato, Sérgio. Seria altamente esclarecedor nas vibrantes páginas do jornal impresso que se despediu de nós todos a conta-gotas, produzindo lágrimas. Pois é, em Rondônia e Acre também tivemos alguns momentos semelhantes aos ocorridos com a Enel em 2023. E olhe que ali temos águas em abundância e duas grandes usinas hidrelétricas no Rio Madeira. Apesar da redução do nível do rio a menos de 1m50 – algo nunca visto em 30 anos. Algo está ocorrendo – de ruim. Que tempos!