Se você a vir, diga um oi por mim

Você está longe da pessoa que ama demais, desesperadamente; por algum motivo qualquer, não importa saber qual. Você está desesperadamente longe da pessoa que ama demais – e acontece de um amigo seu estar indo para a cidade da sua amada.

E então você pede ao amigo que, por favor, dê um recado a ela.

Pelo menos quatro lindas, maravilhosas canções foram escritas com esse tema quando eu era bem jovem, e jamais me canso de ouvi-las, com prazer sempre renovado.

A mais recente das quatro foi lançada um ano antes de minha filha nascer – e minha filha hoje se espanta com o quanto a filha dela já é tão mocinha, meu Deus do céu e também da Terra, caminhando para os nove anos de idade e nos surpreendendo a cada dia com seu brilho, sua alegria, sua graça, sua maturidade.

Já faz portanto cerca de meio século que ouço essas quatro canções – e elas não param de me dar alegria, que nem ver minha filha, minha neta, minha mulher.

Marina teria alguma dificuldade de compreender a realidade que os narradores das canções contam, relatam, refletem. Como assim, pedir ao amigo que dê um alô pra moça? Por que não manda logo um zap?

Pois é. Há versos que ficam um tanto estranhos com o passar do tempo, se você não os colocar no devido contexto.

Se você estiver viajando pelo belo Norte, onde os ventos batem forte na fronteira, lembre de mim para uma pessoa que vive lá – uma vez ela foi meu grande amor.

É claro, é óbvio que isso aí do parágrafo acima é uma tentativa canhestra, boba, traduttore traditore, de passar para a Flor do Lácio Inculta e Bela versos que são muito mais bonitos, mais sonoros do que isso:

If you’re travelin’ in the North country fair

Where the winds hit heavy on the borderline

Remember me to one who lives there

She once was a true love of mine.

PèlamordeDeus, que não se entenda, de forma alguma, que vai aí qualquer tipo de menosprezo à Flor do Lácio. Claro que não se trata disso – é só que poesia é a coisa mais difícil de se passar de uma língua para outra, qualquer que seja ela. Sempre se perde muito, traduttore traditore.

Are you going to Scarborough Fair?

Parsley, sage, rosemary, and thyme

Remember me to one who lives there

She once was a true love of mine

Você está indo para a feira de Scarborough? Salsa, sálvia, alecrim e tomilho. Faça com que se lembre de mim uma pessoa que vive lá – uma vez ela foi o meu grande amor.

Epa: aí há algo especialmente parecido entre as duas canções:

She once was a true love of mine

e

She once was a true love of mine.

Como é que é isso? Alguém copiou alguém!

Mas não é isso, não é essa questão que me interessa. O que me interessa é exatamente falar das semelhanças dessas quatro canções maravilhosas.

***

São todas lindas, maravilhosas, as quatro – mas provavelmente a mais bela de todas seja a que veio por último entre elas, a que foi dada ao mundo em 1974:

If you see her, say hello

She might be in Tangier

She left here last early spring

Is livin’ there, I hear

Say for me that I’m all right

Though things get kind of slow

She might think that I’ve forgotten her

Don’t tell her it isn’t so

Se você a vir, diga oi. Ela pode estar em Tânger. Saiu daqui no começo da primavera, e está morando lá, pelo que ouvi dizer. Diga por mim que estou bem, embora as coisas estejam um tanto devagar. Ela pode pensar que a esqueci. Diga a ela que não é assim.

E depois:

If you get close to her

Kiss her once for me

I always have respected her

For doin’ what she did and gettin’ free

Oh, whatever makes her happy

I won’t stand in the way

Though the bitter taste still lingers on

From the night I tried to make her stay

Se você chegar perto dela, dê um beijo por mim. Eu sempre a respeitei por ter feito o que fez, e ficado livre. Qualquer coisa que a faça feliz, não vou me colocar no caminho, embora o gosto amargo ainda permaneça da noite em que tentei fazer com que ela ficasse.

Ah, meu… “If you get close to her, kiss her once for me”… Que beleza descomunal têm esses versos…

A história de amor acabou, ela foi embora, se mudou pro outro lado do mundo, e o amor é a coisa mais triste quando se desfaz, é claro, porque Vinicius sempre tem razão – mas o cara tem por ela, a mulher que quis ir embora, o maior respeito, a maior consideração, a maior admiração.

É o absoluto contrário daquela coisa nojenta, horrorosa, vexaminosa, asquerosa do “Mas enquanto houver força em meu peito / Eu não quero mais nada / Só vingança, vingança, vingança aos santos clamar / Você há de rolar como as pedras / Que rolam na estrada / Sem ter nunca um cantinho de seu / Pra poder descansar”.

If you get close to her / Kiss her once for me.

Que absoluta maravilha!

***

As três canções que citei aí acima são assim um tanto sérias. Não são tristíssimas, de forma alguma, e muito menos desesperadas. De jeito algum o narrador quer ser a sombra da amada perdida, a sombra da mão da amada perdida, a sombra do cão da amada perdida, como Jacques Brel exagerou o exagero do exagero em “Ne me quitte pas”.

E de jeito algum quer vingança, vingança, que ele não é, de forma alguma, de baixarias.

Mas a outra das quatro canções que falam exatamente desse mesmo tema, um olá para aquela que uma vez foi meu grande amor, é brincalhona, bem humorada. E o narrador demonstra claramente que é muito jovem, talvez até jovem demais.

É como se o narrador falasse com um amigo que tinha ido visitar a cidade em que ele havia vivido, da qual havia, por um motivo qualquer, se mudado para bem longe. Ele pergunta ao amigo se tudo lá continuava bem, como era antes, se os amigos ainda continuavam se encontrando, na boa – e, por falar nessas coisas, me diga: ela mencionou meu nome? Assim, por puro acaso, bem de passagem, ela falou meu nome?

It’s so nice to meet an old friend and pass the time of day

And talk about the home town a million miles away

Is the ice still on the river, are the old folks still the same

And by the way, did she mention my name

Did she mention my name just in passing

And when the morning came, do you remember if she dropped a name or two

Is the home team still on fire, do they still win all the games

And by the way, did she mention my name?

***

A mais antiga dessas canções é “Scarborough Fair” – e, na verdade, dela não há certidão de nascimento, não se conhece a data nem o nome dos pais. Em diversos discos em que ela foi gravada – como, por exemplo, no de Marianne Faithful de 1966, North Country Maid, ou no de Carly Simon de 2007, Into White –, o nome do compositor aparece como Trad.

Trad é um compositor absolutamente genial, talvez o mais genial de toda a história da música popular, até porque assina canções dos mais diversos países, das mais diversas línguas, de “Peixinhos do Mar” que ouvimos com Milton Nascimento, até “Greensleaves”, que ouvimos com dezenas de artistas e bandas, passando por exemplo por “Casamiento de Negros”, que a chilena Violeta Parra recolheu e divulgou para o mundo.

Trad, evidentemente, é a forma abreviada de traditional, tradicional. Ou seja: tão antiga que ninguém sabe o nome do autor.

Simon & Garfunkel, que gravaram diversas canções Trad especialmente em seus dois primeiros álbuns, de 1963 e 1964, fizeram uma versão esplendorosamente bela de “Scarborough Fair” no seu quarto álbum, de 1966, ao qual deram exatamente o título sonoro, lindo, poético, de Parsley, Sage, Rosemary and Thyme – exatamente o segundo verso da canção, o que enumera os temperos, as especiarias, salsa, sálvia, alecrim e tomilho.

O troço era tão extraordinariamente lindo, e se tornou ainda mais conhecido mundo afora porque enfeitou um dos filmes mais marcantes não apenas da década, mas do século, The Graduate, no Brasil A Primeira Noite de um Homem, que aparentemente pouco gente reparou o detalhe de que, no selo do disco, apareciam os nomes de Paul Simon e Art Garfunkel como sendo os compositores daquela canção tradicional inglesa que provavelmente foi composta ali por volta de 1790, 1810 – pelo menos uma centena de anos antes de nascerem os pais dos garotos nova-iorquinos Paul & Art, Art & Paul.

Tá, é verdade que alguns versos, de autoria de Art, novos foram acrescentados, entre os originais, e por isso no selo do disco o que vemos é “Scarborough Fair/Canticle”, mas então no máximo deveria constar como autor “trad/Art Garfunkel”…

Não tenho o menor interesse em saber por que raios a Columbia Records botou o nome dos dois grandes músicos como autores da canção tradicional, folclórica, centenária.

Só gostaria de deixar claro que, quando o incrivelmente jovem Bob Dylan gravou em seu segundo disco, The Freewheelin’ Bob Dylan, de 1963, o ano em que completou 22, a canção “Girl from the North Country”, e usou nela o verso “She once was a true love of mine”, o verso “She once was a true love of mine” já havia sido escrito fazia décadas. Mais de século.

***

Não vai aí, pelamordeDeus, nenhuma crítica, nenhuma reclamação. Neste mundo nada se cria, tudo se copia, dizia Lavoisier. Eu copio de todo mundo, dizia Woody Guthrie, o sujeito que o jovem Dylan tentava imitar em tudo. O plágio é básico em todas as culturas, dizia o pai de Pete Seeger, Charles Louis Seeger Jr, um erudito musicólogo e folclorista.

“Girl from the North Country”, eu creio (certeza absoluta não tenho, não), foi a única composição que Dylan gravou duas vezes em seus discos oficiais de estúdio. Depois daquela gravação no segundo álbum, de 1962, o disco que o transformou no “porta-voz de sua geração”, como diziam os jornais e revistas todos, com as canções políticas fortes, marcantes, inesquecíveis, “Blowin’ in the Wind”, “Masters of War”, “A Hard Rain’s a-gonna Fall”, o cara viria a regravá-la em um dos seus discos pós-1968 em que ele tentava desesperadamente se livrar daquela coisa de “porta-voz”, e fazia propositadamente um álbum de canções pessoais, emotivas, emocionadas. Em Nashville Skyline, de 1969, ele canta “Girl from the North Country” em dueto com o grande mestre da country music Johnny Cash. Já era imenso, gigantesco, já era um dos músicos mais reverenciados, estudados do planeta – mas Johnny Cash era mais velho, era o símbolo da respeitabilidade. O dueto dos dois é simplesmente uma das coisas mais lindas da música folk.

Que eu saiba, o grande Johnny Cash nunca gravou canção do canadense Gordon Lightfoot. Ele não gravou – mas Peter, Paul and Mary, Claudine Longet, Sarah McLachlan gravaram, sem contar Ian & Sylvia. E Bob Dylan também – Bob Dylan, que gravou poucas músicas de outros compositores ao longo da imensa carreira. OK, gravou “Early Morning Rain”, uma canção séria, tristonha, e não “Did She Mention My Name?”, aquela coisa deliciosa, bem humorada, sorridente.

Poderia ter gravado. Essa coisa de que Bob Dylan é um sujeito de músicas tristes, pesadas, sérias demais é lenda urbana. O sujeito tem, sim, algumas canções bem alegrinhas, até meio safadinhas. Umas quatro ou cinco, no meio das 400 que compôs, mas que tem, tem.

***

O que me leva finalmente de volta – que texto danado de grande, siô! – a “If You Say Her, Say Hello”.

“If You Say Her, Say Hello” é uma das mais belas canções que já foram escritas, em qualquer lugar, em qualquer época.

Há uma interessante versão dela em italiano, “Non dirle che non è cosi”, de Francesco De Gregori:

Se la vedi dille ciao

Salutala dovunque sia

Era partita tempo fa

Potrebbe essere in Tunisia

Dille che non si preoccupi

Per le cose lasciate qui

E se crede che l’abbia scordata

Non dirle che non è così.

Mas uma das mais belas versões dessa canção foi feita por um brasileiro. E o cara teve a coragem, a ousadia, o desplante de alterar a letra escrita pelo sujeito que transformou o rock em poesia, o cara que viria a ser o primeiro compositor de música popular a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura.

Em vez de cantar “if you see her, say hello”, Renato Russo teve a coragem, a ousadia, o desplante de cantar “if you see him, say hello”.

Transformou a letra em uma declaração de amor homo. Gayzou o troço. Enveadou, com aquela voz macha pra carái que ele tinha.

Grande, imenso, incomensurável Renato Russo. Que me perdõem os politicamente corretos, mas isso é que é sujeito macho!

***

Vixe Maria Mãe de Deus, era para ser um suelto, uma brincadeira, uma coisa leve, suave – virou quase um Guerra e Paz, que não termina nunca!

E enquanto escrevia esse textoquenãoterminanuncajamaisemtempoalgum, ainda me ocorreu o seguinte:

Será que minha paixão por essas canções tem algo mais, além do simples prazer diante da arte? Será que tem a ver com feridas escondidas na minha mente, no meu subconsciente?

Sei lá… Regina dizia que eu era a pessoa mais anti-freudiana que ela já havia conhecido. É possível que eu nem tenha subconsciente…

Mas o fato é que me lembrei do adolescente Sérgio Vaz, minha encadernação de muito tempo atrás, que de repente, contra sua vontade, foi afastado de sua cidade e de todos os amigos e amigas e jogado num gulag na Sibéria, digo, em Curitiba, a Fria, Onde Jânio Quadros Comia Moscas, e então passou boa parte do exílio frio escrevendo cartas para as amigas e os amigos distantes…

Vixe… Pretendi ser brincalhão nesse parágrafo aí acima, citando o título um artigo publicado sobre Curitiba na Revista da Civilização Brasileira exatamente nos anos que passei lá, mas ficou literatura barata, e uma coisa agressiva demais contra a cidade. Besteira. Tenho ótimos recordações do meu período curitibano, e sempre que visito meu irmão lá adoro a cidade. Mas que deixei em Belzonte uma moça que was once a true love of mine, lá isso é verdade. Bem, não uma moça, mas unas três. Coração adolescente é grande.

If you see her, say hello…

Abaixo, as letras das canções. Com os links para elas no YouTube.

Girl from the North Country (1963)

(Bob Dylan)

If you’re travelin’ in the North country fair

Where the winds hit heavy on the borderline

Remember me to one who lives there

She once was a true love of mine

If you go when the snowflakes storm

When the rivers freeze and summer ends

Please, see if she has a coat so warm

To keep her from the howlin’ winds

Please, see if her hair hangs long

If it rolls and flows all down her breast

Please, see for me if her hair’s hangin’ long

’Cause that’s the way I remember her best

I’m a-wonderin’ if she remembers me at all

Many times I’ve often prayed

In the darkness of my night

In the brightness of my day

So, if you’re travelin’ in the north country fair

Where the winds hit heavy on the borderline

Remember me to one who lives there

She once was a true love of mine

 

Scarborough Fair

(trad)

Are you going to Scarborough Fair?

Parsley, sage, rosemary, and thyme

Remember me to one who lives there

She once was a true love of mine

Tell her to make me a cambric shirt (in the deep forest green)

Parsley, sage, rosemary, and thyme

Without no seams nor needle work

Then she’ll be a true love of mine

(Sleeps unaware of the clarion call)

Tell her to find me an acre of land

Parsley, sage, rosemary and thyme

Between the salt water and the sea strands

Then she’ll be a true love of mine

Tell her to reap it with a sickle of leather

Parsley, sage, rosemary, and thyme

And gather it all in a bunch of heather

Then she’ll be a true love of mine

Are you going to Scarborough Fair?

Parsley, sage, rosemary, and thyme

Remember me to one who lives there

She once was a true love of mine

 

Did she mention my name? (1968)

(Gordon Lightfoot)]

It’s so nice to meet an old friend and pass the time of day

And talk about the home town a million miles away

Is the ice still on the river, are the old folks still the same

And by the way, did she mention my name

Did she mention my name just in passing

And when the morning came, do you remember if she dropped a name or two

Is the home team still on fire, do they still win all the games

And by the way, did she mention my name

Is the landlord still a loser, do his signs hang in the hall

Are the young girls still as pretty in the city in the fall

Does the laughter on their faces still put the sun to shame

And by the way, did she mention my name

Did she mention my name just in passing

And when the talk ran high, did the look in her eye seem far away

Is the old roof still leaking when the late snow turns to rain

And by the way, did she mention my name

Did she mention my name just in passing

And looking at the rain, do you remember if she dropped a name or two

Won’t you say hello from someone, they’ll be no need to explain

And by the way, did she mention my name

 

If you see her, say hello (1974)

(Bob Dylan)

If you see her, say hello

She might be in Tangier

She left here last early spring

Is livin’ there, I hear

Say for me that I’m all right

Though things get kind of slow

She might think that I’ve forgotten her

Don’t tell her it isn’t so

We had a falling-out

Like lovers often will

And to think of how she left that night

It still brings me a chill

And though our separation

It pierced me to the heart

She still lives inside of me

We’ve never been apart

If you get close to her

Kiss her once for me

I always have respected her

For doin’ what she did and gettin’ free

Oh, whatever makes her happy

I won’t stand in the way

Though the bitter taste still lingers on

From the night I tried to make her stay

I see a lot of people

As I make the rounds

And I hear her name here and there

As I go from town to town

And I’ve never gotten used to it

I’ve just learned to turn it off

Either I’m too sensitive

Or else I’m gettin’ soft

Sundown, yellow moon

I replay the past

I know every scene by heart

They all went by so fast

If she’s passin’ back this way

I’m not that hard to find

Tell her she can look me up

If she’s got the time

Janeiro de 2022

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