Run Run se fué pa’l Norte, no sé cuándo vendrá

A gravação do conjunto Inti-Illimani de “Run Run se Fué pa’l Norte”, feita ali por 1970, 1971, tem perto de 4 minutos e meio – e, em sua maior parte, é instrumental. Iletrado, como gosto de brincar. Os belos versos de Violeta Parra ficam na abertura, bem curta, e depois no encerramento. Todo o meio da gravação é instrumental – e o Inti-Illimani é um grupo de instrumentistas absolutamente brilhantes.

Horacio Salinas, violão e voz. Horacio Durán, cencerro. José Seves, violão. I. Julio, contrabaixo. J. Bali, rayador. C. Salinas, piano. D. Donoso, cajón. Isso em uma das muitas formações do conjunto – a de 2006, do álbum Esencial. Em 1987, a formação era Horacio Salinas, Renato Freyggang, Max Berru, José Seves, Jorge Coulon, Marcelo Coulon, Horacio Duran.

Várias formações, desde sua fundação, em 1967, por estudantes da Escola Tecnica del Estado, que depois viraria a Universidad de Santiago de Chile. Mas desde sempre – e através de décadas e décadas, formações e formações –, um grupo musical extremamente cuidadoso com a instrumentação, os arranjos. As vozes são belas, sim – mas, a rigor, são apenas parte de uma orquestra. O que mais importa, o que mais impressiona no som do Inti-Illimani são os arranjos, os instrumentos – tudo muito suave, melodioso, sempre acústico.

Quando explodiu o que seria rotulado como Nueva Canción Chilena – ali nos últimos anos 60 e primeiros anos 70, exatamente na época da ascensão do governo da Unidad Popular de Salvador Allende –, Violeta Parra era a grande, a santa, a deusa, a Madona; Victor Jara era o gênio, o porta-voz, o guia; e dois conjuntos dividiam igualmente a linha de frente, o Quilapayun e o Inti-Illimani.

O Quilapayun era mais aberta, estrondosamente político, guerrilheiro. Na canção “Venceremos” (Sérgio Ortega-Cláudio Iturra), ouvia-se um trecho de discurso de Fidel Castro, e, em seguida, as palavras daquele discurso transformadas em letra da canção – uma melodia linda, diga-se.

O Quilapayun era a linha de frente. No último comício da Unidad Popular, para eleições regionais e parciais parlamentares, no início de março de 1973, ao final daquela que seria a última campanha política antes do golpe militar, o Quilapayun foi ponto alto. (Eu sei porque eu estava lá no comício, e vi tudo.)

O Inti-Illimani era do mesmo movimento, da mesma turma – mas optava pela suavidade, pelo instrumental elaborado, pela distância do panfleto.

Violeta não viveu para ver o golpe e a ditadura – havia morrido em 1967, apaixonada pelo garoto que a fez escrever “Volver a los 17”. Angel e Isabel, seus filhos, conseguiriam fugir para o exílio na França (onde, muitos, muitos anos mais tarde, por um golpe de sorte, Mary e eu fomos vê-los, num teatro num arrondissement bem distante dos primeiros). Victor Jara todo mundo sabe: foi preso, levado – como multidão de outros chilenos do bem – ao Estádio Nacional, onde os milicos do tipo Brilhante Ustra cortaram fora suas mãos antes de finalmente matá-lo. Não sei exatamente o que aconteceu com os músicos do Quilapayun – mas os do Inti-Illimani, sorte grande deles, estavam em turnê pela Europa quando os milicos comandados pelo general Augusto Pinochet Ugarte asfixiaram aquela tentativa de implantar o socialismo pela via legal, democrática.

Tiveram carreira gloriosa, aqueles moços, felizes moços. Em 1987, por exemplo, gravaram para a CBS americana Fragments of a Dream, um disco extraordinário com John Williams – o violonista soberbo, não o maestro e compositor homônimo, o das maravilhosas trilhas sonoras dos filmes de Steven Spielberg. Gravaram vários discos no Primeiro Mundo, alguns nas maiores gravadoras, como a EMI, em que fizeram um de seus mais belos álbuns, Arriesgare la Piel, de 1996.

Depois que a ditadura sanguinária acabou, voltaram ao Chile. Em 1998, fizeram turnê pelo Brasil; Mary e eu os vimos na Sala Adoniran Barbosa do Centro Cultural São Paulo. Uma beleza.

***

Diacho, a idéia não era fazer um texto informativo sobre o Inti-Illimani – era fazer um suelto sobre “Run Run Se Fué pa’l Norte”. O problema é que os textos, como os filhos, não fazem o que a gente quer que eles façam. Têm vida própria, vão pra onde querem – e, como diz Joan Manuel Serrat, “nada ni nadie puede impedir que sufran”.

Bem, Serrat fala isso com relação aos filhos, esos locos bajitos – mas vale também para os textos.

Acho que o que eu queria inicialmente dizer é que tenho no iTunes (e portanto também nos iPods, que chamo de Rádio Sérgio Vaz), três gravações de “Run Run se Fué pa’l Norte”. Uma é essa do Inti-Illimani que me encantou pela milionésima vez e me fez mergulhar no que sei sobre o conjunto.

A outra gravação é da banda (chilena, claro) Los Jaivas, que tem uma pegada assim meio folk-rock – mistura coisas do mais límpido e tradicional som do folclore chileno e seus seguidores com guitarra elétrica, baixo elétrico, baterias. Algo na linha do que Bob Dylan fez a partir de seu quinto disco, Bringing it all Back Home, de 1965 – misturar folk com elementos do rock, o que criou o folk-rock.

E aqui é interessante lembrar que Victor Jara estava seguindo os passos de Dylan e colocando guitarras elétricas nos arranjos em suas gravações ali do início dos anos 70, como, por exemplo, em “El Derecho de Vivir en Paz”, sua ode a Ho Chi Min, gravada em 1971, com um belíssimo solo de guitarra. Jara ia pelo caminho de Dylan, e também de Caetano e Gil – partia da música tradicional, de raiz, para avançar, ir em frente, desbravar novas fronteiras.

A terceira gravação é a da própria autora, aquela Violeta “Canta loca, cantadora, / Querible competidora / De los pájaros sin rama”, como diz a letra de “Violetas Populares”, de Mario Trejo para melodia de Astor Piazzolla, cantada maravilhosamente por Amelita Baltar.

Ah, Violeta, Violeta…

Há algumas gravações de Violeta quando mais velha, depois dos 40 anos, que são um horror, um pavor – a voz dela é feia, horrorosa, uma taquara rachada que faz a voz de Dylan soar como uma bachiana. Mas, ao ouvi-la agora, para escrever este suelto, vi que na gravação que fez de “Run Run Se Fué pa’l Norte” seu timbre não está feio, não, de forma alguma. Tudo bem, não é aquela coisa cristalina, puríssima, com que o Criador dotou sua filha Isabel, mas é uma bela voz.

E, diabo, por que ela precisaria de uma voz perfeita, sendo uma das melhores compositoras de música popular de qualquer época, de qualquer lugar deste planeta?

E agora chega de escrever, porque quero ouvir “Run Run Se Fué pa’l Norte”. Umas cinco vezes em seguida.

Run Run Se Fué Pa’l Norte

Violeta Parra

En un carro de olvido

Antes del aclarar

De una estación del tiempo

Decidido a rodar

Run Run se fue pa’l norte

No sé cuándo vendrá

Vendrá para el cumpleaños

De nuestra soledad

 

Al los tres días carta

Con letras de coral

Me dice que su viaje

Se alarga más y más

Se va de Antofagasta

Sin dar una señal

Y cuenta una aventura

Que paso a deletrear

¡Ay, ay, ay, de mí!

 

Al medio de un gentío

Que tuvo que afrontar

Un transbordo por culpa

Del último huracán

En un puente quebrado

Cerca de Vallenar

Con una cruz al hombro

Run Run debió cruzar

 

Run Run siguió su viaje

Llegó a Tamarugal

Sentado en una piedra

Se puso a divagar

Que sí, que esto, que lo otro

Que nunca, que además

Que la vida es mentira

Que la muerte es verdad

¡Ay, ay, ay, de mí!

 

La cosa es que una alforja

Se puso a trajinar

Sacó papel y tinta

Y un recuerdo quizás

Sin pena ni alegría

Sin gloria ni piedad

Sin rabia ni amargura

Sin hiel ni libertad

 

Vacía como el hueco

Del mundo terrenal

Run Run mandó su carta

Por mandarla no más

Run Run se fue pa’l norte

Yo me quedé en el sur

Al medio hay un abismo

Sin música ni luz

¡Ay, ay, ay, de mí!

 

El calendario afloja

Por las ruedas del tren

Los números del año

Por el filo del riel

Más vueltas dan los fierros

Más nubes en el mes

Más largos son los rieles

Más agrio es el después

 

Run Run se fue pa’l norte

¡Qué le vamos a hacer!

Así es la vida entonces

Espinas de Israel

Amor crucificado

Coronas del desdén

Los clavos del martirio

El vinagre y la hiel

¡Ay, ay, ay, de mí!

 

Este texto, que só publico agora, 18/11/2022, é de setembro. Este ano está sendo tão louco que levei dois meses para botar o suelto no ar.

 

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