Paciência tem limites

O Tribunal Superior Eleitoral tem procurado desativar as minas que constantemente o presidente Jair Bolsonaro monta para desacreditar o sistema eleitoral brasileiro.

Exaustivamente respondeu, uma a uma, todas as questões levantadas pelo representante das Forças Armadas na Comissão de Transparência do TSE, criada em agosto do ano passado pelo então presidente da Corte, ministro Luís Roberto Barroso. Quando já tinha esgotado o prazo, os militares encaminharam novas questões, também respondidas por quem tem a competência constitucional pela condução das eleições

Mas para tudo há limite. Existe uma linha divisória que não pode ser ultrapassada. É inaceitável a possibilidade de que as eleições aconteçam submetidas à tutela militar. No seu intento de criar tumulto para não aceitar o pronunciamento das urnas, caso lhe seja adverso, Jair Bolsonaro tem atentado diuturnamente contra dois grandes ativos do país.

Desde a redemocratização as Forças Armadas granjearam o respeito dos brasileiros por terem deixado para trás sua tradição de atuar como “poder moderador”, se atendo, exclusivamente, às suas funções constitucionais. Ao arrastá-las para a arena política, o presidente da República conspurca a imagem delas e alimenta receios quanto à possibilidade de os militares voltarem a intervir na vida política nacional.

Não é crível que as Forças Armadas se envolvam em aventuras golpistas. Ao longo dos últimos 30 anos elas já demonstraram que podem ter aprendido as lições da história e vão querer preservar o seu maior patrimônio: o respeito dos brasileiros. Mas tanto as questões levantadas pelo representante militar na Comissão do TSE como as últimas posturas do ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira, mostram um certo grau de alinhamento com as teorias conspirativas de Bolsonaro.

O próprio presidente tem se esmerado em passar a idéia de que as eleições ocorrerão sob a tutela militar. Sua frase “As Forças Armadas não vão fazer o papel de chancelar apenas o processo eleitoral” revela a visão distorcida sobre o papel dos militares em relação às eleições. Constitucionalmente, eles se limitam a atuar, quando convocados pela Justiça Eleitoral, para o garantir que a votação ocorra em clima de ordem e tranquilidade.

A rigor, a Constituição sequer lhes confere o direito de “chancelar as eleições”. Esse poder é do próprio TSE. Tampouco têm poder escrutinador, como o presidente tentou atribuir ao divulgar a falsa versão de que, entre as questões levantadas pelo representante dos militares na Comissão de Transparência, estava o pleito de ter uma ligação entre o sistema de apuração do TSE e o sistema de processamento das Forças Armadas, como se fosse delas a palavra final sobre a lisura das eleições.

O segundo ativo que Bolsonaro se esmera em tentar desconstruir é o próprio sistema eleitoral brasileiro por meio do voto eletrônico, vigente desde as eleições de 1996. Sobejamente o TSE já provou ser um sistema auditável, confiável e difícil de ser fraudado. Exatamente por isso granjeou respeitabilidade internacional, sendo referência mundial. Antes dele, tivemos o voto de cabresto, o voto de bico de pena, o voto escrito e a apuração manual, sujeita a erro humano, para não dizer a fraude.

Contra todas as evidências, o presidente usa a Abin, o ministério da Defesa e os generais aboletados no governo em sua trama contra as urnas. Seu objetivo final é muito claro: criar um clima de tumulto para não aceitar o veredito dos eleitores, a exemplo do que fez Donald Trump nas eleições dos Estados Unidos. É bastante crível a hipótese levantada pela colunista Eliane Cantanhêde de isto acontecer não por meio de um golpe militar, mas sim da ação de milícias de bolsonaristas armados.

De tudo isso fica uma lição. Em hipótese alguma se deve atribuir às Forças Armadas papel além dos determinados pela Constituição. Quando as convidou para participar da Comissão de Transparência, Barroso tinha um fim nobre: dar maior credibilidade e transparência ao processo eleitoral, em virtude da pregação de Bolsonaro em favor do voto impresso, então soterrado pelo Congresso Nacional.

Por ingenuidade e boa-fé Barroso findou por, involuntariamente, contribuir para arrastar os militares para a disputa política, ampliando o espaço de o presidente tentar usá-los como massa de manobra.

É preciso recolocar as questões no devido termo, com a Justiça Eleitoral assumindo as rédeas do processo, condição imprescindível e constitucional.

Não foi apenas a paciência que se esgotou. O país está exausto.

A caravana tem de seguir em frente, a despeito do ladrar dos cães. O Brasil vai ao voto e quem ganhar, leva. Simples assim.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 11/5/2022.

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