Finalmente o governo argentino descobriu o ovo de Colombo: “a inflação é uma fábrica de pobreza”. A frase é do novo superministro da Economia, Sérgio Massa, ex-ministro dos governos Nestor e Cristina Kirchner e ex-presidente da Câmara de Deputados. Massa sonha alto. Tem a pretensão de ser o Fernando Henrique Cardoso da Argentina, promovendo estabilidade econômica em meio a uma inflação de 90% prevista para o fim do ano.
A crise é também social. Cerca de 40% dos argentinos estão na linha da pobreza.
Massa assume o cargo como a segunda maior autoridade do país, abaixo apenas de Cristina Kirchner, atual vice-presidente da Argentina. O presidente Alberto Fernandez amarga uma reprovação de 73%. É hoje uma espécie de rainha da Inglaterra na Casa Rosada. Se não tiver o mesmo destino de Raul Alfonsín, presidente que renunciou a seis meses do término de seu mandato, já estará no lucro. Reeleição só irá acontecer por um milagre dos deuses.
A crise da Argentina, onde o dólar paralelo valorizou-se em relação ao oficial em cerca de 160% e as divisas do país derreteram, tem o DNA do modelo kirchnerista. É produto de uma política econômica pautada na expansão dos gastos públicos, dos subsídios e na emissão de moeda para fazer frente a uma dívida pública correspondente a 80% do PIB. Além do congelamento de preços, como aconteceu no ano passado.
A inflação é um problema crônico desde a década de 80. Vai e volta. No governo Carlos Menem parecia ter sido domada quando outro superministro da Economia, Domingos Cavallo, conseguiu inserir na Constituição a conversibilidade entre o dólar e o peso, com a moeda americana valendo o mesmo da moeda local. O resultado foi uma gigantesca crise econômica.
Cavallo voltaria a ser ministro no governo de Fernando de la Rúa, quando criou o “corralito” para impedir a corrida aos bancos e a retirada em massa nas contas-corrente e nas cadernetas de poupança. O “corralito” foi um dos estopins para o “que se van a todos” que levou à renúncia do presidente de la Rúa, em dezembro de 2001.
Quando chegou ao poder, a então presidente Cristina herdou do seu antecessor, Nestor Kirchner, a prática de maquiar indicadores econômicos. Desde dezembro de 2006 a inflação oficial divulgada variava entre um terço e metade da inflação real. O PIB também era maquiado. Os dados estatísticos argentinos perderam credibilidade mundialmente porque o Instituto Nacional de Estatísticas e Censos foi instrumentalizado politicamente para vender uma realidade cor de rosa que só existia na propaganda do kirchnerismo.
A dura face da inflação assumiria visibilidade no governo de Maurício Macri, até como uma herança maldita dos anos Nestor/Cristina. Macri terminaria seu governo com inflação de 52% e se viu na contingência de apelar para empréstimos do FMI, da ordem de US$ 54 bilhões.
A negociação da dívida com o Fundo Monetário Internacional é também um dos fatores da presente crise que levou à assunção de Massa. O então ministro Martin Gusman estava negociando com o FMI, aceitando as exigências do Fundo, entre as quais a de um déficit primário de apenas 2,5% e o fim de subsídios.
Teve de renunciar por pressão da vice-presidente Cristina Kirchner, contrária ao acordo com o Fundo, em uma demonstração de que o poder real estava em suas mãos e não nas do presidente Fernandes. No lugar de Gusman assumiu Silvina Batakis. Ficou no cargo apenas 24 dias. Não passou credibilidade e o dólar paralelo disparou, ultrapassando a casa de 300 pesos. No oficial valia 130 pesos.
A manobra de Cristina produziu mais um desastre. No início de agosto, promotores públicos acusaram a vice-presidente de criar e liderar uma “extraordinária rede de corrupção” durante o período em que ela e seu marido comandaram o país. Enfraquecida, aceitou a nomeação de Massa, apesar de o pacote do novo ministro estar alinhado com os ditames do FMI.
Político pragmático, com trânsito nas diversas alas do peronismo e no empresariado, Sergio Massa tomou posse anunciando medidas na direção correta. Não é nenhum Plano Real, longe disso. Faltam, em sua proposta, reformas estruturais. Mas há elementos positivos: incentivo às exportações, redução dos gastos públicos com o congelamento das contratações estatais e corte de subsídios no setor elétrico e no de água e gás para as áreas não vulneráveis.
De imediato provocou leve melhora no câmbio e no risco Argentina, mas seu grande desafio é vencer a descrença dos argentinos diante da sensação de uma crise sem fim. Terá de responder também à demanda social. As ruas de Buenos Aires tem sido palco de manifestações, reclamando uma renda básica universal, em função do aumento exponencial da pobreza. O cobertor é curto. Se for atender o clamor popular, terá de cortar em outra área.
Há ainda a “oposição interna” no próprio peronismo. É questão de tempo para sua ala mais à esquerda se opor ao seu programa, por considerá-lo “neoliberal”. Afinal, vai contra tudo o que os governos populistas dos Kirchners fizeram.
O kirchnerismo, por sua vez, vive o seu último tango. Se lograr sucesso, Sergio Massa será o candidato do peronismo na disputa presidencial do ano que vem, encerrando, assim, a hegemonia dos Kirchners no peronismo. E, se naufragar, Cristina irá junto, correndo o risco de ser condenada por corrupção. Convenhamos, as perspectivas não são boas para a mandarina argentina.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 10/8/2022.