A democracia na pele

“É provável que o dia 11 de agosto de 2022 passe doravante a figurar entre os mais relevantes na trajetória democrática do Brasil. Foram lidas duas cartas em defesa da democracia em ato na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), mesmo local onde o jurista Goffredo da Silva Telles Jr. leu, em agosto de 1977, sua Carta aos Brasileiros, marco no início da derrocada da ditadura militar. Outras cidades também foram palco de eventos semelhantes.”

O Globo abriu assim o editorial que, impaciente, sem conseguir esperar pelo jornal impresso do dia 12, publicou às 15h09 deste próprio 11 de agosto. Achei isso uma delícia: um dos três maiores jornais do país não teve paciência – quis manifestar o mais rapidamente possível o seu contentamento diante da festa bonita.

E foi bonita a festa, pá. (A foto acima é de Eduardo Knapp/FolhaPress.)

“Com o pátio das arcadas do Largo São Francisco lotado, os presentes ouviram o conteúdo da Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em Defesa do Estado Democrático de Direito, lançada pela USP e inspirada na de 1977”, prosseguiu o editorial do Globo. “Antes foi lido o manifesto Em Defesa da Democracia e da Justiça, encabeçado pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e assinado por entidades representativas dos setores produtivos e da sociedade civil.”

E foi em frente:

“Os dois textos apoiam de forma enfática a democracia e o sistema eleitoral brasileiro. Condenam os ataques mentirosos e reiterados contra as urnas eletrônicas.

“O evento encheu de manifestantes a praça em frente ao prédio da São Francisco e comprovou o que já demonstravam as mais de 900 mil assinaturas em apoio à Carta da USP e as mais de cem entidades que ratificaram a iniciativa da Fiesp.

“Reuniu cidadãos de diferentes classes sociais, representantes de movimentos da sociedade civil, estudantes, profissionais liberais, acadêmicos, ex-ministros de distintas administrações, líderes sindicais, empresários, artistas e celebridades.”

Maior verdade. Gente de todos os tipos – e de todas as idades. Uma maravilha.

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Como eu comentei em notinhas que mandei para meu irmão Geraldo e minha cunhada Eneida, e para o Valdir Sanches, que havia me dito que contava com um texto meu sobre o evento:

* Lotamos o Largo. Esta foi uma boa característica do ato. Não sei, claro, fazer cálculo de multidão, mas o Largo estava lotado.

* Segunda boa característica: tinha gente de todas as idades. Mary reparou mais de uma vez: havia muitos jovens. Jovens, gente dos 20 aos 40, e, claro, muita gente mais velha.

* Tinha de tudo. Claques organizadas – e não apenas da CUT, UGT, UNE, Umes. Mas também uma claque de LGBT muito bem produzida, e uma claque de naturebas/ecologistas com muitos cartazes artesanais e vestidos a caráter. E também muita, mas muita, mas muita gente solta, não de torcidas organizadas, gente como a gente…

Como descreveu melhor que eu, em um post do Facebook, o mestre Tibério Canuto Queiroz Portela, veterano militante do Partidão, hoje um dos coordenadores da Roda Democrática, que numa dessas impossibilidades malucas encontramos no meio da multidão, ao lado de Dona Gil:

“Estava bonita a festa democrática no Largo São Francisco. Era a cara do Brasil mestiçado. Brancos, pretos, pardos, pessoas de todos os gêneros, classes sociais e credos religiosos e políticos. Muitos da minha geração, mas muitos, muitos mesmo, adolescentes com espinhas no rosto. Gente de gravata e gente com a cara do povão. Quando encontrei um grupo com camiseta da UMES meu coração de secundarista falou mais alto e puxei o coro “A UMES somo nós, nossa força nossa voz!”. A gurizada vibrou!”

(A foto abaixo é de Mary Zaidan; a foto acima… Diacho, copiei do portal da Follha e agora não consigo achar para dar o crédito do fotógrafo…)

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Vera Magalhães fez a ligação com o clima das diretas-já, em seu texto no portal do Globo:

“Os presentes ao ato em duas partes realizado neste 11 de agosto na Faculdade de Direito da USP fizeram em muitos momentos um paralelo com a primeira Carta pela Democracia, de 1977, mas o clima que se viu no Salão Nobre, no pátio das Arcadas e no Largo de São Francisco, em frente ao prédio da Faculdade de Direito da USP, lembrava mais os grandes comícios das Diretas Já, de 1984, dados o pluralismo e o grau de divergência que os principais atores têm em quase todos os assuntos.

“Em 1977 como agora foram a USP e os juristas a se levantarem primeiro, e era nítido o orgulho dos estudantes da São Francisco, vestindo camisetas com os dizeres “Estado democrático de direito sempre”, em serem anfitriões e organizadores do evento que reuniu milhares de pessoas dentro e fora do prédio. Foram também eles, os estudantes, a quebrar o protocolo dos atos, que evitou a menção direta ao presidente Jair Bolsonaro. Primeiro, no discurso da representante do Centro Acadêmico 11 de agosto, e, depois, no coro de “Fora Bolsonaro” entoado ao término da leitura da carta assinada por 950 mil pessoas.

“Foi um acerto reservar aos políticos presentes o papel de espectadores dos atos. Assim, fica mais difícil a narrativa de Bolsonaro e de seus ministros de que se tratou de ato partidário voltado a desgastá-lo e a promover este ou aquele candidato. Os presidenciáveis não compareceram à USP, mas estiveram lá o candidato do PT ao governo de São Paulo, Fernando Haddad, o candidato ao Senado pelo PSB, Márcio França, o presidente nacional do PSDB, Bruno Araújo, deputados e candidatos a deputado e ex-ministros como Aloizio Mercadante e José Carlos Dias, além de professores, advogados, jornalistas, economistas, ativistas de diferentes causas, empresários e sindicalistas.”

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Não foi só O Globo que não aguentou esperar pela edição impressa da sexta-feira 12 de agosto. Às 15h47 do 11 de agosto, a Folha de S. Paulo tascou um belo editorial na internet:

“Movimentos cívicos em todo o país deixaram claros ao pretendente a autocrata no Palácio do Planalto os limites inegociáveis da democracia brasileira. As eleições periódicas, o respeito a seus resultados e a posse dos vitoriosos inscrevem-se em pedra na Constituição de 1988.

“No largo de São Francisco, na capital paulista, deram-se nesta quinta (11) duas declarações de intransigência com a ordem democrática.

“Entidades sindicais, empresariais e de outros segmentos da sociedade compuseram um arco-íris de filiações, convicções e finalidades para reafirmar seu compromisso comum com os marcos civilizados da disputa política, o império da lei e os direitos fundamentais.

“Também no largo situado na região do primeiro povoamento urbano de São Paulo, o pátio da Faculdade de Direito —a qual completava 195 anos de fundação— foi o cenário da leitura da carta, subscrita por centenas de milhares de cidadãos, cujo mote é “Estado Democrático de Direito sempre!”.

“Atos convergentes no objetivo de realçar as fronteiras intransponíveis ao autoritarismo erguidas pelo regime constitucional e no de reconhecer a eficácia e a confiabilidade do sistema eleitoral ocorreram em outras cidades brasileiras.

“De todas essas manifestações salienta-se o amálgama entre empregados e patrões, progressistas e conservadores, liberais e estatistas, desconhecidos e famosos, população e elite. Elas demonstram que a democracia no país não se restringe a alguns enunciados afixados num pedaço de papel. Tornou-se a pele cívica dos brasileiros.”

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Uau, Bolha, perdão, Falha, perdão – Folha! Que beleza, meu! Que maravilha!

“A democracia no país não se restringe a alguns enunciados afixados num pedaço de papel. Tornou-se a pele cívica dos brasileiros.”

Vou roubar esta pérola para o título deste post.

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“Um Brasil altivo defende a democracia”, cravou O Estado de S. Paulo em seu editorial  na edição da sexta-feira, 12 de agosto:

“Se o presidente Jair Bolsonaro envergonhou profundamente o País ao difamar a democracia brasileira perante embaixadores estrangeiros, a resposta da sociedade em defesa das eleições e do regime democrático orgulhou e emocionou o País. Ontem, em todo o território nacional, foram lidos manifestos em defesa do Estado Democrático de Direito, numa demonstração luminosa de que a sociedade está vigilante e não aceita retrocessos autoritários. A democracia é um valor inegociável, o patamar mínimo imprescindível. Não é questão de ser de esquerda, direita ou centro. É apenas a firme compreensão de que não existe projeto de país sem respeito às regras e às instituições democráticas.

“Na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, foram lidos dois manifestos. Elaborada pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e que recebeu a adesão da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), da União Nacional dos Estudantes (UNE), da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e de muitas outras entidades, a carta Em Defesa da Democracia e da Justiça é expressão contundente de que o apoio ao regime democrático e ao Poder Judiciário une os mais diversos setores e as mais variadas ideologias. ‘A todos que exercem a nobre função jurisdicional no país, prestamos nossas homenagens neste momento em que o destino nos cobra equilíbrio, tolerância, civilidade e visão de futuro’, diz a carta da Fiesp. A sociedade não está dividida em relação à democracia e às instituições democráticas.

E o Estadão encerrou assim seu editorial:

“Após a leitura da Carta de 22 no pátio das Arcadas, tocou-se o Hino Nacional. Seus versos ressoaram forte no centro de São Paulo e em todo o Brasil. Eram a certeza de que, apesar de toda a escalada de violência de Jair Bolsonaro contra a democracia, continua havendo um País altivo, que não deseja ser refém dos autoritários e que lutará para defender suas instituições, suas eleições, sua democracia. Esse é o verdadeiro e profundo Brasil.”

Ah, a hora do Hino… Que maravilha que foi…

Em sua coluna no Estadão, Eliane Cantanhêde escreveu:

“O movimento deste 11 de agosto de 2022 reforçou a posição de amplos setores do funcionalismo e escancarou a resistência da sociedade civil às ameaças do presidente Jair Bolsonaro, seus filhos e boa parte de seus seguidores às instituições, eleições e urnas eletrônicas. O Supremo, o TSE e a mídia não estão mais sozinhos.

“Quando uma causa é ecumênica, apartidária e une patrões e empregados, direita e esquerda, essa causa é forte, enérgica, move um país, move o mundo. O dia 11 tratava-se de democracia, e o Brasil sabe muito bem o que é ditadura e o que é democracia.

“Agora, é aguentar o tranco, porque Bolsonaro, o governo, sua campanha e os bolsonaristas não vão desistir do confronto e das ameaças e a maior expectativa é quanto ao 7 de Setembro, a data nacional, de todos os brasileiros e, neste ano, dos 200 anos da Independência do Brasil.”

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Meu amigo Valdir Sanches estava esperando um texto meu, pessoal e intransferível como são todos os meus textos. Eu tinha garantido a ele que não iria escrever nada – além daquelas notinhas, pequeninos registros de quem esteve lá. Achava que não teria nada a dizer. Mas, diabo, eu tenho um site de textos, que publica 98 textos sobre política entre cada 100 (com uns dois sobre música ou cinema…), e então não teria sentido não registrar aqui esse ato histórico.

Afinal, a gente esteve lá, pô.

Meus pitacos aqui não são importantes. Mas o fato é que, com esses trechos dos editoriais da Folha, do Globo e do Estadão, e dos artigos de Eliane Cantanhêde e Vera Magalhães, fica aqui um sólido registro.

E, como meus textos são necessariamente pessoais e intransferíveis, termino com mais duas daquelas notinhas que mandei pra irmão, cunhada e amigo:

* O ápice, o clímax foi, é claro, a hora do Virundum, o das Margens Plácidas. O sistema de som tocou alto a introdução, bem alto e com som abafado, horrível, mas o povo cantou tudinho, maravilhosamente. Foi muito emocionante.

* Havia uns 437 neguinhos distribuindo e vendendo coisas do PT, camisetas com a cara do Lula, etc, etc, etc. Mas o povo do PCdoB também estava bem presente, e com adesivos bem produzidos. Depois do Virundum, teve coro de Olê olê olá Lulá Lulá. Consegui me conter e não berrar Luladrão. Fiquei bem quientinho.

Gostaria só de acrescentar que, enquanto cantávamos o Hino Nacional, Dona Mary chorou feito criança pequena, e este velho brasileiro errante aqui marejou brabo.

11 de agosto de 2022, com complemento no dia 12. 

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