O elefante na sala

Eles são um terço dos brasileiros e representam o maior fenômeno de massas dos últimos quarenta anos. Resultado do êxodo rural e do processo de transformação do Brasil de uma sociedade agrária para essencialmente urbana, os evangélicos são, na sua grande maioria, pretos ou pardos e pobres. Vivem nas periferias dos grandes centros, onde o Estado é ausente, em situação de vulnerabilidade e incertezas.

Na próxima década deverão ser a maioria da população, configurando em um curto período histórico outra brutal transformação no perfil do Brasil. Só para ter uma dimensão do fenômeno: 91% dos brasileiros em 1970 eram católicos e apenas 5% evangélicos. A velocidade da expansão, principalmente das vertentes pentecostais e neopentecostais, aparece em um recente dado fornecido pelo IBGE. Por ano, são criadas mais de 14 mil igrejas evangélicas no país.

Explicar esse fenômeno e entender o universo de seus fiéis é um grande desafio, tanto para as forças políticas do país como para pesquisadores e intelectuais.

Autor de Povo de Deus, livro que vem influenciando parte da esquerda e políticos como Ciro Gomes, Lula, Marcelo Freixo e Tabata Amaral, o antropólogo Juliano Spyer compara a situação dos evangélicos com a de um elefante na sala. Ele está lá, todos percebem, mas ninguém quer falar sobre o assunto por ser incômodo.

Seu livro é até agora o que mais fornece subsídios para decifrar o complexo mundo dos evangélicos nas suas variadas vertentes. Em parte, a expansão dos pentecostais e neopentecostais se explica por ser uma “religião simples, pregada por pessoas simples para outras pessoas simples”.

Há questões terrenas nessa conversão.

Pelas páginas de Povo de Deus fica evidenciado que as igrejas evangélicas prestam serviços de bem-estar nas periferias, por meio de redes de solidariedade, além de abrir possibilidades para o ingresso no mercado de trabalho, incentivar a educação e fortalecer laços familiares. Desempenham um papel essencialmente positivo.

Contribuem ainda para a diminuição da violência doméstica, ao combater o alcoolismo e, segundo Juliano Spyer, propicia a ascensão na escala social, com parte de seus fiéis se transformado em classe média, pela via do empreendedorismo.

Em outras palavras, cumprem um papel que caberia ao Estado ao ofertar serviços para quem vive em meio a um mundo de vulnerabilidade e incertezas.

E valem também para quem ingressa no sistema carcerário. Para sobreviver dentro de nossas penitenciárias, o preso tem apenas duas possibilidades: ou adere a uma facção criminosa ou se envolve em uma das inúmeras igrejas evangélicas.

Isso explica por que os pentecostais e neopentecostais crescem tanto entre presos e ex-presidiários. Essas igrejas são a única alternativa ao alcance de suas mãos para escapar das garras do crime e para se reinserir na sociedade.

O autor de Povo de Deus não transmite uma visão idílica sobre os evangélicos nem desconhece que seu código moral é conservador, refratário a muitas bandeiras civilizatórias. Nem ignora que sua representação política, por meio de bancadas evangélicas, embute o risco da invasão teocrática do Estado, constituindo-se numa ameaça ao caráter laico do Estado.

Mas alerta para a necessidade do diálogo positivo com esse imenso contingente de pessoas, e que é preciso levar em consideração o “caráter heterogêneo do mundo evangélico e sua realidade complexa”. Isso descarta estereótipos ou visões preconceituosas, como considerar os evangélicos como mercadores da fé e fanáticos.

Segundo Spyer, a esquerda erra ao tratar os evangélicos como inimigos e, de forma simplista, reduzir a “teologia da prosperidade” a uma concepção “neoliberal”. Boa parte da rejeição dos evangélicos à esquerda ocorre porque ela insiste em criticá-los por estimularem o empreendedorismo, como se fosse um absurdo as pessoas quererem prosperar.

Spyer dá o caminho das pedras: é preciso acentuar os pontos em comum com os evangélicos em vez de ameaça-los com uma agenda identitária, como muitas vezes a esquerda age.

Mesmo no terreno dos valores é possível encontrar um patamar comum.

O fortalecimento dos laços familiares, a defesa da família diante da ameaça de sua desestruturação em função do efeito da violência e das drogas, não são uma bandeira de esquerda ou de direita, mas uma necessidade concreta.

Da mesma maneira, o empreendedorismo é um valor positivo, sobretudo em um mundo em que o chão de fábrica não gera empregos na proporção das necessidades dos brasileiros.

O elefante na sala, instrumentalizado em eleições passadas, estará novamente no centro da disputa presidencial. Exigirá ser ouvido e tratado com respeito, e não de forma utilitarista.

Com a palavra, os candidatos.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 19/1/2022. 

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