O Congresso divorciado do país

Claro que Jair Bolsonaro é de longe o pior de tudo que poderia acontecer ao país. Mas é impressionante como, em outubro de 2018, os brasileiros não apenas elegeram o pior presidente da República da História como também escolheram, se não o pior Legislativo de todos os tempos, um dos piores – com toda, com absoluta certeza.

E, para coroar tanta infelicidade junta, os nobres deputados ainda tiveram a coragem de escolher para a presidência da Câmara no biênio 2021-2020 esse Arthur Lira, uma das figuras mais repugnantes, desprezíveis e prejudiciais que já houve no Brasil.

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, é bastante diferente do outro – a começar pelo fato de que, ao contrário de Lira, não dorme em cima de 140 pedidos de impeachment de Bolsonaro. E tem sido bem mais firme do que Lira na defesa da democracia, do Judiciário, das urnas eleitorais, diante dos ataques diários do presidente da República. Mas a verdade é que o Senado, assim como a Câmara, tem sido pródigo em cometer absurdos.

Nos últimos poucos dias, Senado Federal e Câmara dos Deputados ameaçaram o Brasil e os brasileiros com estas decisões insanas, entre outras:

* Incluir um “jabuti” no projeto de lei de privatização da Eletrobrás que prevê a criação de um conjunto de gasodutos que servirão para atender às empresas de um único sujeito, Carlos Suárez, “o rei do gás”, ao custo de cerca de R$ 100 bilhões do dinheiro do contribuinte! De passagem, claro que a dinheirama serve também para encher os bolsos de alguns espertos – razão pela qual o projeto tem sido conhecido pelo nome de Centrãoduto;

* Trazer de volta o pagamento de quinquênios aos membros do Judiciário: reajustes automáticos a cada cinco anos para juízes, promotores e procuradores. Inclusive os aposentados. A conta é de R$ 7,6 bilhões por ano. Isso para algumas das categorias mais bem pagas do funcionalismo público. Enquanto milhões de brasileiros passam fome – miseravelmente, literalmente –, o Senado resolveu desenterrar essa proposta;

* Aprovar a toque de caixa, contrariando todos os muitos e sólidos argumentos dos especialistas, a regulamentação da educação de crianças em casa – uma medida que só atende aos interesses das famílias mais conservadoras e mais xiitamente evangélicas – parte do público que Bolsonaro cultiva;

“Um governo em fim de feira, de um presidente que todos os dias investe contra marcos civilizatórios, dos direitos dos povos originários à defesa do meio ambiente, não tem legitimidade para aprovar uma medida com tantas consequências para as crianças quanto esse aparentemente inofensivo e pontual homeschooling”, escreveu Vera Magalhães em sua coluna no Globo desta sexta-feira, 20/5.

E continuou:

“É com projetos como esse, que alimentam bolhas de radicalização ideológica, que se corrói o tecido social e se enseja a formação de grupos cada vez mais avessos ao diálogo e ao contraditório. Que as prioridades sejam essa na educação e, com a outra mão, o aprofundamento de privilégios para a elite do funcionalismo mostra quanto o Legislativo, e não só este governo lastimável, está divorciado dos debates relevantes para a maioria do povo brasileiro.”

Na mesma página do artigo de Vera Magalhães, O Globo condenou duramente, em editorial, o projeto de ensino doméstico. Citou os corretíssimos argumentos contrários ao sistema, com ênfase para o principal deles: “O maior problema do projeto é afastar a criança do convívio escolar. O papel da escola não é apenas ensinar o conteúdo didático, mas também habilidades sociais e, acima de tudo, expor os alunos a gente que é e pensa diferente. A escola é essencialmente um meio plural. Manter a criança numa bolha não ajudará a prepará-la para o mundo real.”

Também nesta sexta-feira, as decisões absurdas, estapafúrdias do Legislativo foram tema do artigo de Eliane Cantanhêde no Estado de S. Paulo: “O senador e advogado Rodrigo Pacheco alterna a defesa da democracia com a da volta do quinquênio para o povo brasileiro pagar.

E o Legislativo continua legislando em causa própria. A prática confirma que a Lei de Improbidade virou Lei da Impunidade. Se o criminoso não sabia que estava cometendo um crime, tudo bem. Ou seja, o desvio de dinheiro público culposo, sem dolo, passa em brancas nuvens e os envolvidos na falta de oxigênio em Manaus na pandemia se livraram, inclusive o ex-ministro Eduardo Pazuello.

“O Congresso aproveitou a boa iniciativa de atualizar a Lei de Improbidade para ampliar a impunidade. Depois de muito debate e de estudos de juristas, a Câmara mudou tudo e aprovou urgência em oito minutos. No Senado, o relator, réu por improbidade, apresentou seu parecer em 24 horas. Vapt-vupt. Entre os beneficiados, 14 senadores.”

O pior presidente da República. E o pior Legislativo.

Culpa nossa, do povo brasileiro. Fomos nós que os elegemos.

Abaixo vão as íntegras dos dois artigos e do editorial.

***

Chega de retrocesso no Legislativo

Por Vera Magalhães, O Globo, 20/5/2022

Se é para votar a pauta coalhada de retrocessos que está se desenhando, melhor seria o Congresso emendar festejos de São-João, convenções, recesso, campanha e só voltar a se debruçar sobre esses projetos depois das eleições, quando o clamor das urnas já tiver passado, e a vontade de fazer média com setores do eleitorado não ditar políticas que terão custos para o país, não só orçamentários, mas civilizacionais.

O Senado achou por bem, com outras prioridades para discutir, como a reforma tributária, desenterrar uma Proposta de Emenda à Constituição que, sob a justificativa de promover uma necessária valorização das (já para lá de valorizadas) carreiras da magistratura e do Ministério Público, reedita a antiga prática do pagamento de quinquênios, reajustes salariais automáticos a cada cinco anos trabalhados por juízes, promotores e procuradores.

O penduricalho, um dos poucos retirados da frondosa árvore de benefícios que são os contracheques dessas categorias, foi extinto em 2005. Agora a proposta, que vem sendo defendida pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, seria votada com a condição de ser casada com outra, parada na mesma Casa há meses, que acaba com supersalários e outros privilégios, como auxílios isso e aquilo.

Acontece que, além de serem projetos separados — existe o risco de que um seja votado e o outro convenientemente colocado numa fila que nunca anda —, a PEC que restabelece os quinquênios estende seu pagamento a aposentados e pensionistas. Ora, se essas pessoas não estão na ativa, onde vai parar a justificativa de que é necessário valorizar a carreira diante da proibição de que os ocupantes exerçam outras funções com boas remunerações?

Não bastasse esse trem da alegria sendo colocado nos trilhos, a Câmara votou nesta quarta-feira um projeto talhado apenas para dar a Bolsonaro um discurso para seu eleitorado quanto ao cumprimento de uma promessa de campanha. A regulamentação da prática do homeschooling atende ao público conservador e ao evangélico, dois dos estamentos (que se fundem, mas não são exatamente o mesmo) mais fiéis ao presidente.

O Supremo Tribunal Federal havia determinado que a prática era inconstitucional porque não havia definição em lei de seu funcionamento. A proposta que sai da Câmara para o Senado tenta dar ares técnicos a algo que é puro capricho ideológico.

A simples ideia de que deputados releguem o caráter que a educação tem de formar cidadãos em prol de uma proposta que é pura empulhação doutrinária é de embrulhar o estômago. Que tenham feito isso votando de afogadilho a urgência do projeto e o seu mérito é assombroso, por revelar uma Câmara absolutamente capturada por pautas sectárias, desde que bem paga à base de orçamento secreto.

O Senado tem merecido crédito por Pacheco finalmente ter levantado a voz em contraposição aos laivos golpistas com que Bolsonaro ameaça as eleições. É vital, mas não encerra as responsabilidades da Casa e de seu presidente.

Um governo em fim de feira, de um presidente que todos os dias investe contra marcos civilizatórios, dos direitos dos povos originários à defesa do meio ambiente, não tem legitimidade para aprovar uma medida com tantas consequências para as crianças quanto esse aparentemente inofensivo e pontual homeschooling.

É com projetos como esse, que alimentam bolhas de radicalização ideológica, que se corrói o tecido social e se enseja a formação de grupos cada vez mais avessos ao diálogo e ao contraditório.

Que as prioridades sejam essa na educação e, com a outra mão, o aprofundamento de privilégios para a elite do funcionalismo mostra quanto o Legislativo, e não só este governo lastimável, está divorciado dos debates relevantes para a maioria do povo brasileiro.

     ***

Senado precisa barrar o projeto absurdo sobre ensino doméstico

Editorial, O Globo, 20/5/2022

Ao aprovar em regime de urgência a regulamentação do ensino doméstico, a Câmara deu demonstração de profunda falta de sintonia com as carências da educação básica e com os problemas reais do Brasil. A proposta, que ainda irá ao Senado, estava empacada havia mais de três anos devido ao conteúdo de escassa relevância, a não ser para um grupo exíguo de ideólogos conservadores e para o presidente Jair Bolsonaro. Deslanchou agora em razão da proximidade da eleição.

O ensino doméstico é uma bandeira de campanha de Bolsonaro, cuja implantação estava prometida para os primeiros cem dias de governo. É uma obsessão dele e de seus seguidores, que veem as escolas como redutos da esquerda e focos de doutrinação política. Daí a sanha por afastar as crianças da sala de aula.

Considerando a realidade brasileira e os índices educacionais indigentes, isso é um absurdo. A educação doméstica, chamada pelos seus defensores de homeschooling, em nada contribui para a qualidade do ensino. As carências da educação são de outra natureza: precariedade das escolas, falhas na formação de professores e deficiências provocadas pelo fechamento prolongado na pandemia. O projeto é apenas mais um round na batalha ideológica travada cotidianamente pelo bolsonarismo.

É verdade que, por pressão da oposição, o texto aprovado contém restrições. Exige que pelo menos um dos responsáveis pela educação doméstica tenha curso superior — imposição que os governistas tentam derrubar —, que o aluno esteja matriculado numa escola regular, que seja submetido a avaliações anuais por ela e que o conteúdo siga a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Mas isso não o torna melhor, nem mais aceitável.

O maior problema do projeto é afastar a criança do convívio escolar. O papel da escola não é apenas ensinar o conteúdo didático, mas também habilidades sociais e, acima de tudo, expor os alunos a gente que é e pensa diferente. A escola é essencialmente um meio plural. Manter a criança numa bolha não ajudará a prepará-la para o mundo real. Na pandemia, quando as escolas permaneceram quase dois anos incompreensivelmente fechadas, o estrago ficou evidente. Inúmeros estudos constataram aumento de problemas psicológicos e violência doméstica, para não falar na óbvia evasão escolar.

É certo que o ensino domiciliar é adotado noutros países. Pode até ser importante em casos específicos, como famílias itinerantes. Mas, diante da realidade do Brasil, jamais deveria ser prioridade. Há outras urgências. Os índices educacionais, que já eram ruins, ganharam contornos dramáticos com a pandemia. O ministro da Educação, Victor Godoy, o quinto no atual governo, prometeu apresentar um plano de recuperação do aprendizado. Ora, isso deveria ter sido feito há muito tempo. A grande tragédia do ensino brasileiro é a perda de energia com um projeto irrelevante e equivocado como o do ensino doméstico, enquanto se despreza o que realmente precisa ser feito para melhorar a educação. Faria bem o Senado em rejeitá-lo ou simplesmente esquecê-lo.

***

A democracia e o quinquênio

Por Eliane Cantanhêde, O Estado de S. Paulo, 20/5/2022.

Quando os ministros do Supremo Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Alexandre de Moraes jantaram com senadores e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, a versão foi a de que o Judiciário cobrou mais empenho e solidariedade do Legislativo em defesa das instituições. O menu teria sido democracia, democracia, democracia. Mas…

Menos de uma semana depois, o nosso Estadão divulgava a articulação do Senado para aprovar a volta do quinquênio para o… Judiciário. Em resumo, trazer de volta os 5% para funcionários, aposentados e pensionistas, a cada cinco anos. Conta: R$ 7,5 bilhões por ano.

Pode ter sido coincidência, sem que a volta de um privilégio derrubado em 2005 tenha constado nem da sobremesa, nem mesmo do cafezinho, mas coincidências desse tipo pegam mal, diante dos ataques do presidente Jair Bolsonaro ao Supremo, às eleições e à democracia e da crise que devora a comida e o salário do pobre.

Juízes já desfrutam de penduricalhos como 60 dias de férias, auxílio-moradia em comarcas sem residência oficial e até vale-alimentação. E os salários milionários, muito acima do teto? Apesar disso, o senador e advogado Rodrigo Pacheco alterna a defesa da democracia com a da volta do quinquênio para o povo brasileiro pagar.

E o Legislativo continua legislando em causa própria. A prática confirma que a Lei de Improbidade virou Lei da Impunidade. Se o criminoso não sabia que estava cometendo um crime, tudo bem. Ou seja, o desvio de dinheiro público culposo, sem dolo, passa em brancas nuvens e os envolvidos na falta de oxigênio em Manaus na pandemia se livraram, inclusive o ex-ministro Eduardo Pazuello.

O Congresso aproveitou a boa iniciativa de atualizar a Lei de Improbidade para ampliar a impunidade. Depois de muito debate e de estudos de juristas, a Câmara mudou tudo e aprovou urgência em oito minutos. No Senado, o relator, réu por improbidade, apresentou seu parecer em 24 horas. Vapt-vupt. Entre os beneficiados, 14 senadores.

Agora, sob argumento de “desburocratizar o sistema”, o projeto 700/22, do senador Izalci Lucas (PSDB-DF), faculta aos partidos e seus contadores utilizar qualquer programa (software) privado para prestar contas à Justiça Eleitoral, sem ser o do Poder Judiciário.

“Uma aberração. E se cada um dos 50 milhões de contribuintes declarasse IR de uma forma diferente?”, critica o procurador Roberto Livianu, do Instituto Não Aceito Corrupção, que, aliás, integra o grupo que foi ao ministro do STF André Mendonça contestar a constitucionalidade da “nova Lei de Improbidade”. As boiadas passam, não são só na Amazônia

    20/5/2022

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *