Mula sem cabeça

Desde que o tagarela perdeu a língua, as hostes estão mais perdidas que gado sem cachorro. Os quartéis não lhes dão ouvidos, os alienígenas não comparecem e o capitão entra mudo e sai calado dos parcos eventos militares que ele se digna, digamos, a prestigiar. Nessa altura do campeonato, a pouco mais de 15 dias da entrega da rapadura, não sei se os prestigiados continuarão interessados em ser desprestigiados por aquele que se converteu, por sua livre escolha, em fósforo riscado.

Quando eu era menino, havia uma marca de fósforos chamada Fiat. Nada a ver com a fabricante de veículos italiana, mas com o latim Fiat Lux, do Gênesis. Diz a história que um belo dia o Senhor cansou da escuridão e fez a luz. A caixinha de fósforos me fazia recordar dessa passagem todas as noites que minha avó acendia o lampião quando a noite descia sobre os campos quase vazios em que passávamos os verões, à beira do mar espraiado do Rio Grande do Sul.

Sem o lampião éramos vultos perdidos na noite. E sem os fósforos, pior ainda. Éramos vultos sem esperanças. Uma noite faltou fósforo. Eu esquecera de comprar quando fui à vendinha da praia ao lado, a única em toda a região. Minha avó não se apertou. Pegou um fósforo riscado e acendeu-o no bico do fogão a gás, que por sua vez se acendia com aqueles acendedores de pedra que soltavam faíscas e nunca mais vi desde que inventaram o botão de acender elétrico embutido no fogão. Levou o pau de fósforo aceso na concha das mãos até o lampião e, súbito, fez-se a luz.

Aprendi, então, que um fósforo riscado tem seu valor. Alguém devia dizer isso ao incumbente desincumbido, vamos dizer assim, depois que o voto da maioria detonou sua cadeira. No entanto, isto não quer dizer que suas obrigações incumbidas se encerraram. Elas só acabam exatamente 365 x 4 = 1.460 dias após ser incumbido de governar a nação que ele diz amar acima de tudo, com Deus acima de todos ou coisa assim. Acho que ele se atrapalhou com o próprio lema e o fraseado difícil, e agora se encontra mais perdido do que nós antes de minha avó acender o lampião.

Vamos, coragem, capitão, um fósforo riscado tem seu valor! E com as tecnologias modernas há mais opções de se fazer a luz do que antigamente. Mas é preciso uma coisa, uma única coisa. É preciso ter a mente clara. Uma mente escura e obscura jamais produzirá a luz. Tudo está primeiro na mente. Assim como tudo que existe no universo esteve e ainda se encontra pendurado na mente de Deus, graças a Deus – tal como a chama do lampião de minha avó na noite escura.

Ou, então, que renuncie. Entregue a rapadura ao ávido vice-presidente, agora senador eleito, mas louco para sentir o gostinho do trono da Alvorada. Como eu gosto de ler as entrelinhas antes que as próprias linhas, não pude tirar outra conclusão se não essa, quando o dito cujo falou há poucos dias que não pode vestir a faixa e passá-la ao eleito se não é ele o presidente. Que pena, né, Mourão?

Mas, dizia eu nas primeiras linhas destas mal traçadas que o gado está sem rumo. Problema do gado! O capitão, que na verdade era só um tenente qualquer, nunca foi um líder, um chefe de rebanho, um puxador de vacas, bois e touros. Sempre viveu a reboque de um empreguinho, primeiro no Exército, depois na Câmara de vereadores do Rio de Janeiro e mais tarde na Câmara federal. Daquele jeito que todo mundo sabe no Rio de Janeiro e em Brasília, não preciso recordar.

Quem acredita em mula sem cabeça, merece.

Nelson Merlin é jornalista aposentado e sideral. 

Dezembro de 2022

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