Livrar o Brasil de Bolsonaro (17)

“A escalada do narcotráfico está cada vez mais entrelaçada a uma velha rede de ilicitudes, como o garimpo e a extração de madeira, formando um ecossistema do crime. A Amazônia é hoje um barril de pólvora onde se misturam três mazelas que destroem a reputação do Brasil no mundo: a violência, a miséria e a devastação ambiental.”

As afirmações são de editorial desta quinta-feira, 16/6, de O Estado de S. Paulo. O editorial argumenta que, para combater essa situação, precisaria haver uma rede institucional – mas a que existia está sendo “explicitamente desconstruída pela agenda antiambientalista de Jair Bolsonaro”.

E o jornal conclui: “O mesmo presidente que nutre paranoias conspiratórias sobre ameaças à soberania da Amazônia por parte de Estados e ONGs e gosta de desafiar autoridades que poderiam auxiliar o Brasil no combate a organizações criminosas cada vez mais sofisticadas e internacionalizadas faz vista grossa à real e crescente ameaça às vidas, ao desenvolvimento e à soberania da região: o sequestro da Amazônia por um narcoestado paralelo.”

Exatamente a mesma questão é tema de editorial da Folha de S. Paulo neste dia seguinte ao da confissão dos assassinos de Bruno Araújo e Dom Philips – e os dois editoriais vão exatamente na mesma direção.

A Folha afirma:

“Se criminosos agem livremente naquele rincão amazônico é porque o Estado dali se ausentou. Bolsonaro mais uma vez fugiu à responsabilidade, chegando ao cúmulo da ignomínia ao inculpar os próprios desaparecidos e dizer que empreendiam uma ‘aventura’ e que Phillips era ‘malvisto’ na região.

E conclui, com brilho:

“Jornalismo não é aventura, a Amazônia não será da democracia brasileira enquanto pistoleiros, facínoras e desmatadores impuserem a lei do cão na região, e Bolsonaro não será presidente digno do cargo enquanto se mantiver alinhado aos destruidores da floresta.”

De fato, um brilho. Eu só argumentaria que a última frase demonstra a esperança em algo que é absolutamente impossível. O correto seria:

Bolsonaro não é e nem será nunca presidente digno porque sempre se manteve e se manterá alinhado aos destruidores da floresta.

Os dois belos editorias estão aí abaixo na íntegra, neste 17º volume da série “Livrar o Brasil de Bolsonaro”. (Sérgio Vaz)

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O ecossistema do crime na Amazônia

Editorial, O Estado de S. Paulo, 16/6/2022.

O desaparecimento do indigenista Bruno Araújo e do jornalista Dom Philips despertou o mundo para um mal que atinge a região do Alto Solimões, na fronteira do Brasil com Peru e Colômbia, mas que se alastra cronicamente por toda a Amazônia. A escalada do narcotráfico está cada vez mais entrelaçada a uma velha rede de ilicitudes, como o garimpo e a extração de madeira, formando um ecossistema do crime. A Amazônia é hoje um barril de pólvora onde se misturam três mazelas que destroem a reputação do Brasil no mundo: a violência, a miséria e a devastação ambiental.

Na última década, o Brasil passou de um mercado consumidor da cocaína latino-americana para um dos principais fornecedores do planeta. Organizações como o PCC, o Comando Vermelho e a Família do Norte passaram a orquestrar o transporte transatlântico de cocaína, seja a da Colômbia e do Peru, passando pela rota amazônica até os portos do Nordeste, seja a da Bolívia, passando pelo interior do Centro-Oeste aos portos do Sudeste. A média de apreensões, que entre 1995 e 2004 era de 6 toneladas ao ano, explodiu nos últimos seis anos para 50 toneladas.

Segundo a ONU, o País responde por 7% das apreensões globais, atrás apenas de Colômbia (34%) e EUA (18%). O Brasil é a quarta maior origem para a Oceania e a primeira para a Ásia e a África, e está se tornando para a Europa o que o México é para os EUA.

Na Amazônia, o narcotráfico se entrelaça com os crimes ambientais. As facções se valem dos carregamentos clandestinos de madeira e manganês para escoar as drogas, e também estão envolvidas na mineração ilegal de ouro e invasão de terras indígenas. “Esses grupos criam empresas, lavam dinheiro e tomam parte no contrabando e no tráfico de armas e drogas”, diagnosticou Aiala Couto, um dos coordenadores da pesquisa Cartografias das Violências na Região Amazônica, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

O estudo constata que, entre 1980 e 2019, enquanto no Sudeste os homicídios caíram 19%, no Norte aumentaram 260%. A dinâmica também se diferencia pela acentuada interiorização: enquanto nos municípios rurais do País a violência cai, nos amazônicos, cresce. Para não deixar dúvidas sobre a imbricação entre crimes ambientais, grilagem e as dinâmicas das facções, nos municípios sob pressão do desmatamento, as taxas de homicídios são bem superiores à da Amazônia Legal.

No Alto Solimões, os cartéis de Miami, Medellín e Sinaloa mantêm um grande esquema de transporte de armas e drogas, pistolagem, lavagem de dinheiro e pesca e caça ilegais, que se mescla aos negócios de comerciantes, pescadores, caçadores e políticos locais. A polícia trabalha com a hipótese de que atravessadores tenham assassinado Araújo e Philips por causa dos prejuízos que suas investigações causavam à pesca ilegal.

“A criminalidade à frente das ilicitudes ambientais tem efeitos brutais, incluindo mais insegurança e corrosão da autoridade”, disseram R. Muggah e M. Margolis, do Instituto Igarapé, em artigo para a Reuters. “O Brasil megalopolitano conhece esse roteiro bem demais. Os municípios no caminho da onda de crimes amazônicos devem agora escrever o seu.”

O mero envio de forças militares é caro e pouco efetivo para enfrentar o ecossistema do crime. “É preciso investir no fortalecimento de mecanismos integrados de comando e controle, que conectem esferas federal e estadual, e, em especial, diferentes órgãos e Poderes (Polícias, MP, Defensorias, IBAMA, ICMBio, Judiciário, entre outros)”, aponta o Fórum.

Mas é precisamente essa tessitura de uma rede institucional que tem sido explicitamente desconstruída pela agenda antiambientalista de Jair Bolsonaro. O mesmo presidente que nutre paranoias conspiratórias sobre ameaças à soberania da Amazônia por parte de Estados e ONGs e gosta de desafiar autoridades que poderiam auxiliar o Brasil no combate a organizações criminosas cada vez mais sofisticadas e internacionalizadas faz vista grossa à real e crescente ameaça às vidas, ao desenvolvimento e à soberania da região: o sequestro da Amazônia por um narcoestado paralelo.

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Bruno e Dom

Editorial, Folha de S. Paulo, 16/6/2022

Surgiu a notícia mais temida, nem por isso infelizmente menos provável, do paradeiro do indigenista brasileiro Bruno Araújo Pereira, 41, e do jornalista britânico Dom Phillips, 57, desaparecidos na Amazônia desde a manhã do último dia 5.

De acordo com a Polícia Federal, um pescador envolvido com atividades ilegais confessou ter participado do assassinato e da ocultação dos cadáveres da dupla, que viajava de barco no extremo sudoeste do estado do Amazonas e visitava comunidades na vizinhança da Terra Indígena Vale do Javari, que abriga o maior número de povos isolados na floresta amazônica.

Restos humanos foram retirados do local apontado pelo suspeito.

Pereira trabalhou por uma década na Funai, onde atuou como coordenador da Vale do Javari e de Povos Isolados. Tinha ampla experiência na área, onde escolheu seguir trabalhando após exoneração do setor de isolados e licenciar-se do órgão federal, passando a colaborar com a Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari).

Phillips acompanhava o indigenista para colher informações sobre o sistema de autodefesa dos povos locais contra invasões de garimpeiros, madeireiros, caçadores e pescadores ilegais. Elaborava um livro sobre como salvar a floresta pela qual se apaixonou ao se mudar para o Brasil em 2007.

Profissionais experientes, tinham conhecimento dos riscos de circular num canto do Brasil frequentado também pelo narcotráfico, tanto é que em boa parte dos trajetos contavam com escolta da Univaja. Um advogado da associação informou que seus integrantes e Pereira já haviam recebido ameaças dias antes.

Eram fortes, portanto, os sinais de que eles teriam sido alvos de uma emboscada. Apesar disso, o Planalto tardou a reagir, mobilizando esforços só depois de deflagrada intensa campanha nacional e internacional para encontrá-los.

O mais lamentável na lerdeza desumana do poder público é sabê-la em tudo condizente com o jaez de Jair Bolsonaro. Um presidente bilioso e errático, que subscreve as mais delirantes doutrinas de cobiça internacional pela Amazônia e hostiliza o quanto pode indigenistas, ambientalistas e jornalistas.

Se criminosos agem livremente naquele rincão amazônico é porque o Estado dali se ausentou. Bolsonaro mais uma vez fugiu à responsabilidade, chegando ao cúmulo da ignomínia ao inculpar os próprios desaparecidos e dizer que empreendiam uma “aventura” e que Phillips era “malvisto” na região.

Jornalismo não é aventura, a Amazônia não será da democracia brasileira enquanto pistoleiros, facínoras e desmatadores impuserem a lei do cão na região, e Bolsonaro não será presidente digno do cargo enquanto se mantiver alinhado aos destruidores da floresta.

16/6/2022.

Este post pertence à série de textos e compilações “Livrar o Brasil de Bolsonaro”.

A série não tem periodicidade fixa.

Duas reportagens demonstram como a incompletência do desgoverno arruína o pais. (16)

Temos a obrigação moral de livrar o Brasil de Bolsonaro – em nome dos 33 milhões de brasileiros que não têm direito o que comer. (15)

 

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