“Guerra é paz. Liberdade é escravidão. Ignorância é força.”
“Corrupção é progresso. Punir corruptos é crime.”
As três primeiras afirmações são repetidas à exaustão para os cidadãos pelo Partido, pelo Grande Irmão, na crudelíssima ditadura imaginada por George Orwell na distopia 1984, esse que é muito provavelmente um dos romances mais importantes do século XX.
É a novilíngua – a língua com que o Partido pretendia (e conseguia) mudar a forma com que as pessoas enxergavam o mundo. Na ditadura do Grande Irmão, o passado era sempre reescrito, para se adaptar às necessidades do Partido a cada momento.
As afirmações do segundo parágrafo são na novilíngua lulopetista.
A ação popular movida contra o ex-juiz Sérgio Moro por deputados do PT foi escrita na mais pura novilíngua.
Guerra é paz. Corrupção é progresso. Liberdade é escravidão. Punir corruptos é crime. Lula é o homem mais honesto do mundo. Quem quase destruiu a Petrobrás, a maior empresa brasileira, não foi o lulopetismo, foi quem investigou a roubalheira.
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É forçoso lembrar que a novilíngua não é exclusividade da ditadura do Grande Irmão e do lulopetismo. O bolsonarismo também usa sua espécie de novilíngua quando diz, para dar apenas dois exemplos chocantes, que o ministro Alexandre de Moraes atenta contra a Constituição e a liberdade de expressão, e que o povo armado garante a democracia.
O bolsonarismo é o maior perigo que ameaça o Brasil e a democracia – não há dúvida alguma disso. Mas é impossível não falar, neste site aqui, onde tento registrar os principais fatos políticos do Brasil, esse absurdo atentado à lógica, à verdade dos fatos, à História que é essa ação popular dos deputados petistas.
É impossível não fazer aqui o registro – que foi devida e competentemente feito pelos três maiores jornais do país – na Folha de S. Paulo e no Estado de S. Paulo, em editoriais e, no Globo, em artigo de Merval Pereira.
Minha opinião pode ter pouca ou nenhuma importância. A opinião dos três grandes jornais brasileiros, essa tem, sem dúvida, bastante lastro.
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O PT sendo PT
Editorial, O Estado de S.Paulo, 25/5/2022
Já se viu muita coisa em campanhas eleitorais. Certa vez, a ex-presidente Dilma Rousseff chegou a confessar que, “em época de eleição, a gente faz o diabo”. Mas acionar o Poder Judiciário a fim de transformar uma ação judicial claramente enviesada em peça de propaganda política de um candidato à Presidência da República parece ser a primeira vez. É o caso da ação popular na qual deputados federais do PT pedem que o ex-juiz Sergio Moro seja condenado a ressarcir os supostos prejuízos que teria dado à Petrobras e à economia do País por sua atuação à frente da 13.ª Vara Federal de Curitiba, durante a Operação Lava Jato.
“O ex-juiz Sergio Moro manipulou a maior empresa brasileira, a Petrobras, como mero instrumento útil ao acobertamento de seus interesses pessoais”, escrevem os advogados que representam os deputados Rui Falcão (SP), Erika Kokay (DF), Natália Bonavides (RN), José Guimarães (CE) e Paulo Pimenta (RS). Ora, tal afirmação só faria sentido se o nome do ex-juiz fosse substituído pelo nome dos verdadeiros responsáveis pelo assalto que quase levou a Petrobras à bancarrota – os petistas e seus associados.
O juiz Charles Renaud Frazão de Morais, da 2.ª Vara Federal Cível do Distrito Federal aceitou os argumentos iniciais dos deputados petistas e tornou Moro réu na ação. O ex-juiz classificou como “risível” a ação movida contra ele. E está coberto de razão.
Sergio Moro pode ter cometido muitos erros ao conduzir os processos da Operação Lava Jato na primeira instância da Justiça Federal em Curitiba, erros que já foram apontados pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) e pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Mas a quase ruína da Petrobras não lhe pesa sobre os ombros. Em primeiro lugar, por uma razão tão óbvia que faz com que os argumentos que sustentam o pedido dos deputados petistas beire a litigância de má-fé: Moro era um juiz de primeiro grau, suas decisões estiveram submetidas ao crivo de instâncias superiores. Nada menos do que nove juízes escrutinaram suas sentenças e as validaram em grande parte.
Em segundo lugar, a corrupção envolvendo próceres petistas e seus apaniguados em diretorias da Petrobras causou enormes prejuízos à companhia, mas nem remotamente foi a causa de sua profunda desvalorização durante a era petista. A Petrobras quase sucumbiu pelo voraz apetite do PT em tomar a empresa a fim de transformá-la em centro de execução de políticas públicas, fonte de financiamento ilegal de campanhas eleitorais e enriquecimento ilícito de um punhado de dirigentes e políticos. Graças à Lava Jato, a Petrobras recuperou mais de R$ 6 bilhões desviados no esquema petista, mas entre 2010 e 2014 a estatal perdeu quase 60% de valor de mercado em razão das lambanças lulopetistas. Isso sim é prejuízo.
Por meio de uma ação popular esdrúxula, o PT – vale dizer, Lula – quer reescrever a História e fazer os brasileiros esquecerem por que foram às ruas aos milhões pedir o impeachment de Dilma Rousseff. O desfecho da ação pouco importa – o que interessa é transformar Moro em inimigo do País, e os petistas, em mártires.
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Versões e fatos
Editorial, Folha de S. Paulo, 26/5/2022
O ex-juiz Sergio Moro (União Brasil) se tornou réu numa despropositada ação popular em que se pede ressarcimento aos cofres públicos por prejuízos causados à Petrobras e ao país no curso da Operação Lava Jato. A iniciativa, assinada por cinco deputados petistas, parece ter objetivos mais políticos do que propriamente jurídicos.
Trata-se, como se diz em um clichê contemporâneo, de uma tentativa de controlar a narrativa sobre o envolvimento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do PT em casos de corrupção, tema que será fartamente explorado durante a campanha eleitoral.
A esse respeito, vale revisitar os fatos. O Supremo Tribunal Federal corretamente anulou os processos que corriam contra Lula em que o ex-juiz teve participação. Moro não se revelou um magistrado imparcial, como se soube após os vazamentos de diálogos travados com procuradores da Lava Jato.
Com isso, o líder petista recobrou seus direitos políticos e deve, para todos os efeitos, ser considerado inocente. Entretanto isso não é o mesmo que ter sido inocentado pela Justiça após exame do mérito.
Qualquer que seja o status de Lula, não há como negar que um esquema bilionário de corrupção se instalou na Petrobras sob a gestão do PT. Diversos empresários e políticos confessaram ter participado da esbórnia e devolveram parte do dinheiro desviado.
Moro e os procuradores responsáveis pela Lava Jato cometeram graves erros na condução da operação, mas daí não se pode concluir que tudo não passou de uma grande farsa. A corrupção, infelizmente, era muito real.
Outro ponto a destacar é a forma como o STF anulou os processos contra Lula. O certo teria sido enfrentar questões difíceis, mas não insolúveis, como o uso de provas em princípio ilícitas —os diálogos vazados foram obtidos por hackers, sem autorização da Justiça.
O STF, porém, preferiu atalhos. Decretou-se a parcialidade de Moro num processo que já corria, sem referência aos vazamentos. Pior, na tentativa de evitar a derrota de Moro, o ministro Edson Fachin deflagrou uma manobra desastrada, ao decidir que o foro de Curitiba não era o adequado para julgar Lula.
A maioria dos ministros o acompanhou, mas não deixou de considerar o ex-juiz parcial. Como resultado, criou-se uma avenida bem mais larga para que outros réus também pedissem anulações.
O desfecho melancólico da Lava Jato, porém, não é motivo para ignorar as revelações da operação.
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Piada pronta
Por Merval Pereira, O Globo, 26/5/2022
Quando o Supremo Tribunal Federal (STF) decretou a parcialidade do ex-juiz Sergio Moro nos processos contra o ex-presidente Lula, e, um atrás do outro, em diversos pontos do país, eles foram sendo arquivados, logo surgiu a pergunta que não queria calar, uma piada crítica ao absurdo da situação: “E o dinheiro devolvido graças aos acordos obtidos na Operação Lava-Jato terá de ser restituído a seus ‘donos’?”.
Parecia provocação, mas, sim, é verdade. Já há advogados defendendo que, com os processos arquivados e Moro considerado parcial pelo STF, é possível pedir o dinheiro de volta ao Estado. Para ter noção da situação surreal, apenas um gerente da Petrobras, Pedro Barusco, devolveu à Petrobras R$ 182 milhões desviados no esquema montado pelo governo petista. Virou medida de corrupção, um barusco.
Pois o país da piada pronta bateu seu recorde com a ação popular ajuizada por representantes do PT contra Moro, acusando-o de ter provocado prejuízos ao país ao “manipular a maior empresa do Brasil, a Petrobras, como mero instrumento útil ao acobertamento dos seus interesses pessoais”. Quer dizer, alegam que foi o trabalho da Justiça que prejudicou a Petrobras, e não os roubos cometidos por executivos e políticos.
Segundo os autores da ação popular, a atuação do então juiz prejudicou não apenas a economia do país, mas também a vida dos trabalhadores da estatal e de outras subsidiárias, como a Braskem. O interessante é que não se viu, à época em que os crimes cometidos na Petrobras foram revelados, nenhuma marcha sindicalista protestando contra o assalto à empresa.
O balanço da Petrobras em 2014 mostrou uma perda de R$ 6,2 bilhões só com a corrupção. A maior parte desse roubo (55%), segundo o documento oficial, ocorreu na área de Abastecimento, comandada pelo famigerado Paulo Roberto Costa. Outros R$ 150 milhões referem-se a pagamentos indevidos de empresas não citadas na Lava-Jato. Ao calcular as perdas com corrupção, a estatal concluiu, “com base nos depoimentos tornados públicos”, que o esquema de pagamentos indevidos funcionou entre 2004 e abril de 2012.
Em 2015, o então presidente da empresa, Aldemir Bendine, mais tarde também condenado a oito anos de prisão por corrupção na própria Petrobras, pediu desculpas e disse que “a gente pode até entender que esse número provisionado foi conservador”. O prejuízo líquido de R$ 21,6 bilhões em 2014 foi o maior da Petrobras desde 1991. Durante o governo Dilma Rousseff, a Petrobras bateu seu próprio recorde e registrou o pior prejuízo da sua história: nada menos que R$ 34,8 bilhões.
O Tribunal de Contas da União (TCU) aprovou, sob a relatoria do ministro Benjamin Zymler, estudo sobre prejuízos causados pelo cartel que atuou em contratações da Petrobras entre 2004 e 2012. Essa associação de empreiteiras era chamada de “clube” e comandada pelas seis maiores: Camargo Corrêa, Andrade Gutierrez, Odebrecht, OAS, Queiroz Galvão e UTC. De acordo com o estudo, o valor superfaturado em cada contratação era de 14,53%. Ao todo, as 24 empresas que comprovadamente fizeram parte desse cartel causaram prejuízo à Petrobras de R$ 12,3 bilhões em valores da época.
O que causou o arquivamento de processos contra Lula foi a mudança de jurisdição. Foram retirados de Curitiba por decisão do ministro Edson Fachin. Em teoria, teriam de recomeçar da estaca zero, mas, como o STF decidiu que Moro foi parcial em seus julgamentos, todos os juízes de instâncias inferiores resolveram, um a um, arquivar os processos, como consequência natural da decisão do Supremo.
Muitos consideraram que os casos prescreveram, ou prescreveriam durante a nova tramitação. Mas é absurdo imaginar que não houve roubo ou que a quebradeira da Petrobras foi causada justamente pelo combate à corrupção. Depois dos governos petistas, a gestão da empresa teve de ser completamente modificada para recuperá-la.
A Operação Lava-Jato conseguiu devolver aos cofres públicos um total de R$ 25 bilhões, de acordo com o Ministério Público do Paraná, por meio de acordos de leniência, delação premiada e repatriação. Desses, R$ 6 bilhões foram encaminhados à Petrobras, o restante aos cofres da União.
A devolução do dinheiro da corrupção é um fato incontestável. De onde ele surgiu? Caiu do céu sem que houvesse culpados?
26/5/2021