Gal

Gal Costa conseguiu a proeza fantástica de ser, ao mesmo tempo, uma fiel discípula de João Gilberto – voz cool, intimista, branda, macia, controlada – e uma versão baiana de Janis Joplin – voz solta, alta, agressiva, forte, com o canto “explosivo, emocionado, rasgado, rouco, pura emoção”, como ela mesma diria.

A música popular brasileira é um troço tão absolutamente rico que aconteceu de surgirem na mesma década, a de 60, Nara Leão, Elis Regina, Maria Bethânia, Gal Costa, Nana Caymmi, Clara Nunes, Rita Lee.

Em um palco em que já estavam ou haviam estado Sylvinha Telles, Elizeth Cardoso, Dolores Duran, Dalva de Oliveira, Maysa, Ângela Maria, Alaíde Costa, Emilinha Borba, Marlene, Nora Ney, Aracy de Almeida, Ademilde Fonseca, Carmen Silva,  Clementina de Jesus, Elza Soares…

Palco em que viriam em seguida ou um tanto depois Olívia Byington, Zizi Possi, Amelinha, Ná Ozzetti, Simone, Fafá de Belém, Leila Pinheiro, Mônica Salmaso, Ceumar, Marisa Monte, Baby Consuelo depois do Brasil, Roberta Sá, Virgínia Rodrigues, Adriana Calcanhoto, Elba Ramalho, Ivete Sangalo, Daniela Mercury, Regina Dias, Adriana Maciel…

São muitas vozes maravilhosas. Tão triste, tão miserável em tantas coisas, nesse quesito específico, a música popular, este é um país abençoado por Deus e bonito por natureza, mas que belê.

A imprensa brasileira foi – felizmente – unânime ao tratar Gal  com os elogios mais superlativos, neste dia em que ela, tantas vezes surpreendente, nos surpreendeu com sua morte inesperada, repentina. As imagens aí acima, dos sites dos três maiores jornais do país, O Globo, O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo, são uma mostra disso.

“Uma das maiores vozes da música brasileira”, concordaram os três jornalões.

Mas a gente tem sempre aquela tendência de fazer lista, ranking, campeonato, em busca não de “uma das mais”, e sim “a mais”, e então, em novembro de 1981, o Jornal da Tarde – na época um jornal importante em São Paulo, a cidade que não tem mais fim, não tem mais fim, e que Gal acabaria escolhendo para viver – publicou um texto com este título:

“Uma certeza: Gal é a voz mais bonita da MPB”

O texto começava assim:

“O gaúcho Vitor Ramil, 19 anos de idade, irmão mais novo de Kleiton e Kledir, gravou sua música ‘Estrela, Estrela’ com um sofisticado, quase erudito acompanhamento de instrumentos de corda e de sopro, pouco comum na música popular, para valorizar a melodia bonita. Kleiton e Kledir gravaram a música do jovem irmão no segundo disco da dupla, lançado este mês (novembro de 1981) – e o arranjo foi igualmente rico e sofisticado, com 15 instrumentos (piano, sax, flautas, trompas, trombones) tocados por gente como Wagner Tiso, Luiz Alves, Djalma Correa, Mauro Senise.

Pois Gal Costa também gravou a mesma “Estrela, Estrela”, em seu 13º LP solo, Fantasia, que a Polygram está distribuindo para as lojas esta semana. (…) Zéluiz faz a segunda voz. Acompanhamento: a voz de Zéluiz, e vocais da própria Gal Costa, em playback. Instrumentos que acompanham: nenhum.

Não precisa. Basta a voz de Gal Cosa.

E, ao se ouvir esta faixa, a constatação é inevitável: é a voz mais bonita da música popular brasileira.”

***

Aquele início dos anos 80 era a época em que Gal, então com mais de 15 anos de carreira, unanimidade da crítica, estourava como a grande estrela da MPB. Em março de 1982, o Jornal da Tarde publicou uma matéria sobre o show que Gal apresentava no Palácio das Convenções do Anhembi, na época o maior espaço fechado para apresentações musicais que havia em São Paulo, antes daquelas grandes casas de show no Itaim e mais ao Sul da melhor cidade da América do Sul, da América do Sul. O título era

“Afinadíssima, versátil, alegre: Gal, a nossa superstar”

Alguns trechos:

“Gal Costa já não precisa mais provar que é uma cantora maior, afinadíssima, versátil, que domina perfeitamente a técnica e possui uma das vozes mais belas da música brasileira: o reconhecimento de que ela é uma das duas melhores cantoras surgidas no País nas últimas duas décadas é praticamente unânime. Assim, o show Festa do Interior, que ela apresentou sexta, sábado e domingo passados no Anhembi (o texto é de março de 1982), e volta a apresentar hoje e amanhã, e também no próximo final de semana, comprova mais do que isso. Comprova definitivamente que Gal Costa é, além de uma cantora maior, uma grande estrela. Uma superstar, como existem poucas no ramo.

“Assim como já havia acontecido na sua única apresentação no Rio (25 mil pessoas no Maracanãzinho) e nas outras capitais por onde já passou com este Festa do Interior, Gal lotou inteiramente os quatro mil lugares do Anhembi em todas as três apresentações do fim de semana passado – e certamente voltará a lotá-los neste agora e no próximo. Os ingressos são caros (o mais barato, que os jornais anunciaram ao preço de 500 cruzeiros, estava sendo vendido na última quinta-feira por 1.500 cruzeiros, não pelos cambistas, mas pela própria bilheteria do Anhembi); de poucos lugares se tem uma boa visão do palco; dezenas das cadeiras de couro do Palácio de Convenções do Anhembi foram destruídas, nos últimos meses, sendo substituídas por cadeiras duras, de plástico, mas altas do que as originais (tornando, assim, ainda mais difícil a visão do palco gigantesco); o sistema de som apresentou problemas graves na noite de estréia; em alguns momentos, os arranjos estridentes de Lincoln Olivetti quase encobrem a voz da estrela.

“Apesar de tudo isso, no entanto, Gal faz lotar a nossa maior sala de espetáculos. E mais, muito mais que isso: deixa inegavelmente satisfeita à multidão que paga caro para vê-la. E faz os quatro mil espectadores de cada show ficarem de pé para dançar (ou simplesmente aplaudir) durante o festivo encerramento, que reúne quatro sucessos carnavalescos do repertório da cantora.”

E concluía:

“Durante todos os 60 minutos e as 18 músicas do show, Gal, aos 36 anos, exibiu um vigor e uma garra dignos de uma adolescente: dançou, correu por todos os lados do palco, requebrou, exibiu as pernas deixadas à mostra pelo vestido aberto do lado, suou muito, encharcou o peito fartamente exibido pelo decote. Foi uma Gal já muito suada – mas sem dar mostras de cansaço – que chegou à apoteose final, sob uma chuva de confetes e serpentinas, para cantar, de um fôlego só, seus sucessos “Chuva, suor e cerveja”, “Massa real”, “Balance” e, obviamente, “Festa do interior”. A partir do primeiro destes quatro números finais, já não havia ninguém sentado no Anhembi. E a platéia continuaria de pé, dançando, até exigir que ela voltasse ao palco pra bisar “Festa do interior”. Gal Costa voltou com um rosto feliz, exuberante, seguro de si. Uma superstar. Merecidamente.”

***

O Brasil é um país tão doido, tão às vezes completamente desprovido de razão, que, exatamente ali, em 1982, quando Gal estava no auge da fama, da aclamação popular, nada menos que sete dos 15 álbuns que ela havia gravado em 17 anos de carreira estavam fora de catálogo, ausentes das lojas de discos.

Em junho, três daqueles sete álbuns foram relançados. Atento, o Jornal da Tarde publicou um texto com o título

“A Gal dos velhos tempos, ótima como sempre”

Eis o texto:

“O reconhecimento de que Gal Costa é uma cantora excepcional é velho; tem praticamente a idade de sua carreira, que começou, no palco, em 1964, e, no disco, em 1965. (Mesmo antes disso, João Gilberto, o mestre, o guru, já havia dito que ela era a melhor cantora brasileira). Mais recentemente, nos últimos cinco ou seis anos, a cantora excepcional se transformou também em superstar, ídolo de multidões, uma das maiores vendedoras de discos do País; é hoje a segunda maior vendedora de discos da sua gravadora, a PolyGram (a primeira é Maria Bethânia); seu último LP, Fantasia, lançado em novembro passado, já vendeu mais de 400 mil cópias.

“Absurdamente, no entanto, quase metade de sua discografia era inacessível ao público. Há poucas semanas, finalmente, a PolyGram resolveu diminuir um pouquinho esse absurdo, e colocou de novo nas lojas três dos antigos discos de Gal – Domingo, Gal Costa e Gal a Todo Vapor.

“Domingo é de 1967, e é o primeiro LP de Gal (antes, ela havia apenas participado de uma faixa do primeiro LP de Bethânia, e gravado um compacto simples, na RCA) – e é também o primeiro LP de Caetano Veloso. Os dois dividem igualmente as 12 faixas (todas elas muito bonitas, hoje como em 1967), a maioria delas composta por Caetano. Os arranjos são de Dori Caymmi, Roberto Menescal e Francis Hime – delicados, suaves, agradáveis. A jovem Gal (ela estava com 22 anos), já era, na sua estréia em LP, uma grande cantora; uma cantora cool, intimista, voz branda, macia, controlada – seguindo à risca o modelo do mestre João Gilberto.

“No texto da contracapa – que foi mantida, assim como a capa, idêntica à da edição original -, Caetano Veloso avisava: “Minha inspiração agora está tendendo para caminhos muito diferentes dos que segui até aqui”. De fato. No segundo semestre daquele mesmo ano em que Domingo foi lançado, Caetano apareceu com ‘Alegria, Alegria’, Gil apareceu com ‘Domingo no Parque’, e a música brasileira passou por uma de suas mais profundas transformações, somente comparável à gerada pela bossa nova.

Gal Costa, outro dos LPs que estão sendo relançados agora, já é um produto dessa transformação. Foi gravado em 1968, no auge do tropicalismo – embora tenha sido lançado no início de 1969. O repertório já não é mais meigo, doce, calmo, como era em Domingo. Os arranjos (de Gilberto Gil, do guitarrista Lanny e do genial maestro Rogério Duprat) já incorporam a guitarra elétrica, que na época era maldita na MPB; há intervenções de cordas que fazem lembrar a sonoridade moderna, vigorosa, de algumas obras dos Beatles. Gal estava diferente até na cara: tinha deixado crescer e encaracolar os cabelos. A voz da discípula de João Gilberto se soltava muito mais, atingia tons muito mais altos. Nesse disco estão algumas obras-primas, como ‘Saudosismo’, de Caetano (uma espécie de hino do tropicalismo, uma declaração de amor à capacidade e à coragem de ousar, de mudar, de fazer o novo), ‘Divino Maravilhoso’, ‘Baby’ e ‘Não identificado’. Há participações especiais de Gil e de Caetano.

“Gil e Caetano estavam no exílio, em Londres, quando foi lançado o álbum duplo Gal a Todo Vapor, gravado ao vivo no show de mesmo nome que ela apresentou no pequeno Teatro Opinião, no Rio, em 1971.

“No disco aparecem, convivendo lado a lado, duas Gal Costas – a cantora intimista, linha João Gilberto, cantando clássicos como ‘Falsa Baiana’ ou ‘Antonico’, e a cantora agressiva, forte (com o canto “explosivo, emocionado, rasgado, rouco, pura emoção”, como ela mesma diria muitos anos depois), abandonada contra a vontade pelos companheiros da aventura tropicalista, sozinha no palco para cantar a geléia geral brasileira naqueles perplexos anos de Garrastazu Médici.

“”Era uma época de tentativa de liberação jovem, através do sexo, das drogas, do rock. Eu fazia um trabalho ligado à juventude. O canto rasgado e emocionado combinava com minha cabeleira black-power, as roupas agressivas’, diria há poucos meses a própria Gal.

“Infelizmente, o disco que chega agora às lojas não é o álbum duplo original, capaz de mostrar integralmente a Gal Costa daqueles tempos. Por economia, pressa, desleixo ou desconsideração (para com o público e para com a sua grande vendedora de discos), a PolyGram resumiu em um LP os quatro lados do álbum original. (…) Retirou faixas como ‘Pérola Negra’, ‘Mal Secreto’, ‘Luz do sol’, ‘Charles anjo 45’. Alterou a ordem original das faixas (destruindo, por exemplo, a seqüência perfeita de ‘Sua estupidez’ e ‘Vapor barato’. Mudou, no selo, o próprio nome do disco, do original Gal a Todo Vapor para Gal Fatal (a palavra “fatal” aparece na capa assim como outras palavras apareciam em destaque na contracapa e nas capas internas, mas não é o título). E, pior ainda, teve a coragem de cortar o final de ‘Vapor barato’, originalmente a última faixa do álbum duplo, em que Gal berra como Janis Joplin. Um desrespeito.

“E Gal é superstar, lota maracanãzinhos, vende centenas de milhares de discos…”

***

Os textos acima, entre aspas, são todos meus. Tive, lá atrás, uma rápida encadernação (jornalista não encarna nem reencarna – encaderna e reencardena) como “crítico de música” no Jornal da Tarde, no início dos anos 80. Transcrevi aqui, agora, ao tentar fazer uma homenagem a Gal, porque achei que eles, os textos, fazem sentido.

Qualquer homenagem a Gal faz sentido. Tem, como diz a bela canção que Gal jamais gravou, “sentido, entendimiento y razón”.

Gostei de ver hoje, no Em Pauta, da GloboNews, velhos, experientes jornalistas como Eliane Cantanhêde e Jorge Pontual, dando depoimentos pessoais sobre sua admiração por Gal ao longo da vida.

Sim: há gerações que têm Gal como figura importante em sua formação, em seu crescimento.

Tive a sorte imensa de, cinco anos mais novo do que Gal, ser adolescente quando todos aqueles gênios da MPB estavam começando – e acompanhei Gal de perto desde sempre, desde a gravação dela como segunda voz na faixa “Sol Negro” no primeiro disco de Bethânia, de 1965.

Uma vez fiz um texto dizendo que meu amor pela música de Caetano vinha da adolescência e atravessava os casamentos com Suely e Regina, e vinha pelas décadas da união com Mary. Penso de novo sobre isso agora: faz 32 anos que Mary e eu, juntos, ouvimos Gal – que, antes, ouvi com Regina, e antes ouvi com Suely. Ahn… e com as namoradas entre uma e outra…

Minha filha me contou que passou o dia pensando na mãe, porque Suely seguramente teria ficado chocada com a morte da Gal.

Fico aqui pensando que Suely e Regina estão lá ouvindo Gal cantar. Os anjos, que adoram cantar, ficaram em silêncio. Querem ouvir a voz da Gal.

9 e 10/11/2022

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