Estertores

Com o abandono do emprego no Palácio do Planalto, a recaída da depressão pós-parto das urnas eletrônicas e a total falta de coragem de dizer à sua manada que deixe os quartéis em paz, porque não vai ter golpe, o presidente ora em processo de despejo demonstra de forma dramática o que espera para o pós-Réveillon.

Sem mandato, ele sabe que será alvo fácil dos garrotes do Judiciário. E não há tempo e condições de aprovar no Congresso uma anistia marota, como querem alguns compadres, para livrar presidentes de processos por crimes cometidos no exercício do mandato. Ou, então, nomeá-los senadores vitalícios com a mesma regalia. Não há limite para a imaginação dos adoradores do tal mito.

A certeza do mais cruel dos presidentes é que o leite condensado vai azedar.

Tudo o que sofre, ou ao menos parte de tudo, poderia ter sido evitado se ele tivesse tido o bom senso de se candidatar ao Senado por Rondônia, que eu sugeri aqui como galhofa, no ano passado, e para minha surpresa um de seus acólitos propôs a sério em algum dia deste ano da graça de 2022, não me lembro de quem nem quando. Mas bom senso ou humildade não está nos emaranhados de seu DNA. E deu no que deu.

Seu futuro está traçado e não adianta espernear. Penso da mesma forma sobre o futuro da extrema direita brasileira. A tampa do esgoto que se abriu em 2018 se fechará – ainda que mais vagarosamente do que sobre a cabeça de seu mitômano – por falta de uma voz que dê vida aos recalques e ressentimentos presentes em muitos setores da sociedade civil e estamentos militares. Tivemos em 2018 a vitória das viúvas da ditadura e daqueles que eram jovens oficiais no entorno do general Sílvio Frota, o ministro de Geisel que tentou derrubá-lo em 1977. Civis e militares aos milhões mamaram nas tetas do poder militar durante 20 anos. Com a redemocratização, perderam os quitutes da ditadura. O ódio acumulado extravasou na candidatura de um ex-tenente demagogo e insignificante como eles.

O fracasso do governo que chega ao fim e nada deixa como legado à nação é ele mesmo uma garantia de não retorno. Garantia relativa e não absoluta, porém. Pois tudo dependerá de a soma de acertos ser maior que a de erros do governo que entra. Todos erram, mas há limites para o erro. Este que agora se vai, e espero que não volte, não só errou em profusão como permaneceu no erro. Seu lema era destruir tudo o que se construiu desde a   redemocratização do país. Com o Congresso dominado, não fosse o STF se interpor em seu caminho, teria conseguido realizar seu “ideal”.

Por ironia, o governo que o sucede tem à frente um ex-presidiário imbuído do ideal oposto, o de restabelecer o estado democrático de direito e a harmonia entre os poderes, promover a justiça social e a reconciliação da sociedade com as instituições, a verdade – suprimida pela mentira nestes últimos quatro anos – e a liberdade, relegada nos mesmos quatro anos ao prazer hedonista e fútil de trafegar por rodovias num veículo sobre duas rodas ou exibir-se em jet-ski no lago Paranoá.

Os primeiros sinais de harmonia já se dão.

Mais difícil será restabelecer as condições para o desenvolvimento social, econômico e humano, num país que é a décima maior economia do mundo e paga o menor salário mínimo da América Latina, tem os piores níveis de qualidade e aproveitamento do ensino, um déficit habitacional inaceitável, rede de esgotos para somente metade da população, um sistema de saúde que é exemplo para o mundo no papel e corre o risco de colapsar por péssima gestão, desvios de verbas e pagamentos irrisórios aos hospitais e serviços médicos conveniados. Fora cortes de benefícios para centenas de milhares de aposentados Brasil afora.

Violência, inflação, juros escorchantes e desemprego excruciante completam um quadro de horrores que se agravou estupidamente nos últimos quatro anos, mas vem de mais longe e precisa ser enfrentado nas suas causas e não exclusivamente nos seus efeitos, como geralmente acontece. As soluções são políticas e técnicas. Muitas vezes, mais da primeira do que da segunda. Mas seja como for, o governo central tem que ser o principal incentivador e formulador de soluções, e não seu carrasco. É o que eu espero nos próximos quatro anos e seguintes.

Nelson Merlin é jornalista aposentado. 

Dezembro de 2022

 

 

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