Compreender o passado para mudar o presente

“Cidadãos de todas as classes, mocidade brasileira, vós tereis um código de instrução pública nacional, que fará germinar e vegetar viçosamente os talentos deste clima abençoado, e colocará nossa Constituição debaixo das salvaguardas futuras, transmitindo uma educação liberal, que comunique aos seus membros a instrução necessária para promoverem a felicidade do TODO Brasileiro”.

A frase é de D. Pedro I, pronunciada em agosto de 1822, antes mesmo da Independência do país. De lá para cá, sucessivos governos prometeram uma educação de qualidade extensiva a todos os brasileiros, mas até hoje essa é uma obra inconclusa. Também vem de longe nossa tradição de leis educacionais abrangentes, mas sem condição de implementação prática.

A Constituição de 1824, por exemplo, estabelecia a gratuidade do ensino primário (atual Fundamental I) para todos os cidadãos, mas sua universalização só viria acontecer na última década do século 20, no governo de Fernando Henrique Cardoso.

Entender por que o Brasil se transformou em retardatário em matéria educacional, atrás até mesmo de países do nosso continente, como Argentina, Uruguai e Chile, é pré-condição para a superação de nossas mazelas educacionais.

No momento em que o Brasil comemora o seu bicentenário essa reflexão se impõe. O livro do jornalista Antônio Gois “O ponto a que chegamos: duzentos anos de atraso educacional e seus impactos nas políticas do presente” descontrói o mito de que a educação do passado era de qualidade. Segundo o autor, nosso sistema educacional era uma grande máquina de exclusão em massa, por meio da repetência.

Para se ter uma ideia da pirâmide da educação já na segunda metade do século 20, entre os anos 1961 e 1972: de cada mil alunos ingressantes no ensino primário, 239 completavam esse ciclo; 159 ingressavam no primeiro ano ginasial (atual fundamental II) e apenas 64 concluiriam o colegial (atual ensino médio). No topo da pirâmide, apenas 56 entravam no ensino superior.

Anísio Teixeira, um dos autores do Manifesto Escola Nova e uma das lideranças do movimento “Otimismo pedagógico”, compararia esses dados da década de 60 com os dos Estados Unidos. Naquele país, de cada mil alunos ingressantes do ensino primário 910 concluíam o ciclo, 680 terminariam o equivalente ao ensino médio e 320 ingressariam no ensino superior.

Recorrendo ao livro de Antônio Gois, fica nítido quando o Brasil foi ficando para trás. Para responder às necessidades da Primeira Revolução Industrial os países que hoje compõem o mundo desenvolvido priorizaram a educação, universalizando o acesso ao ensino. Nossas elites agrárias do século 19 não acompanharam tal movimento.

Vamos aos números.

Ao final do século 19 apenas 10% das crianças brasileiras de cinco a 14 anos frequentavam a escola, bem abaixo da Argentina (32%), Cuba (37%), Chile (25%) e até mesmo da Bolívia (14%). Em relação aos países desenvolvidos o fosso era gigantesco: Estados Unidos (94%), Canadá (90%), França (86%), Austrália (86%), Grã /Bretanha (74%) e Alemanha (73%).

Ruy Barbosa via o Brasil como um país onde havia uma decadência na educação em vez de progresso e nos definia “como um povo de analfabetos”. Em especial, invejava a situação da Argentina, onde desde o governo de Domingo Sarmento houve uma forte expansão da escola pública.

São várias as causas para nosso atraso secular. A começar pela desigualdade social, uma herança do escravismo. Resolução do Rio de Janeiro de 1847 deixava de fora da escola “os que padecem de moléstias contagiosas, os escravos e os pretos africanos, sejam libertos ou livres”. Mesmo nos Estados Unidos, um país com um passado escravista, o analfabetismo da população não branca caiu, entre 1870 a 1930, de 80% para 16%. Nós só alcançaríamos este último índice em 2004!

À desigualdade devem ser somadas a falta de investimentos, prioridades distorcidas, descontinuidade de políticas públicas e concepção de que o papel da educação era selecionar os mais capazes. A “pedagogia da repetência” marcou profundamente a história da educação brasileira e ainda hoje se faz presente. Já não temos mais uma taxa de repetência de 60% como no passado recente, mas nossa taxa atual de 7% ainda é alta quando comparada com os países desenvolvidos.

Em 1983 o Brasil investia 2,8% do PIB na Educação, enquanto a Coreia do Sul investia 7,7% do seu PIB. A Coreia tornou-se desenvolvida por ter investido pesadamente na educação básica, mas também por ter adotado um modelo econômico voltado para a exportação de bens industriais, o que requereu uma mão de obra qualificada, com boa formação educacional.

Nós fomos na direção oposta: desenvolvimento via modelo de substituição de importações, sem agregar produtividade. Resultado: em 1960 o PIB per capita brasileiro era 2,5 vezes o da Coreia do Sul, hoje é de apenas 1/3 do PIB per capita dos coreanos.

Mesmo quando a industrialização ganhou ritmo, no Brasil não foi dada a devida prioridade à educação. Tanto o segundo governo de Getúlio Vargas como nos anos dourados de Juscelino a proporção do PIB investido na educação foi inferior ao da época de Dutra. Com um agravante: no governo JK o então ministro da Educação, Clovis Salgado, definiu como prioridade o ensino superior.

O título do livro de Antônio Gois pode induzir a um pessimismo exagerado em relação à educação, como se nada de bom tivesse sido construído ao longo de dois séculos. O autor destaca avanços significativos ocorridos principalmente a partir da redemocratização e, de maneira especial, a partir da última década de 1990, quando políticas públicas como a do Fundef não sofreram descontinuidades e foram ampliadas.

Tampouco autoriza uma leitura pautada em um otimismo ingênuo. Ter a noção do quanto avançamos e dos desafios ainda a serem enfrentados será o tema de futuros artigos.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 17/8/2022. 

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