Civilização ou barbárie – ou Lula ou o horror (8)

O segundo turno do próximo domingo, 30 de outubro, é seguramente a eleição mais importante que já houve no Brasil desde a redemocratização. É também a mais polarizada, a que teve a campanha mais suja, a mais cercada por ameaças e temores.

Com toda certeza, nunca houve uma disputa em que as opções colocadas diante do eleitor são tão absolutamente claras, límpidas – e antagônicas, antípodas.

Não é uma escolha entre esquerda e direita. É muitíssimo maior que algo como a defesa de um Estado forte, intervencionista, versus a visão liberal de defesa do mercado, dos agentes econômicos.

É entre democracia e ditadura. Entre civilização e barbárie.

Entre o combate à pobreza, o respeito ao meio ambiente, à educação, à saúde, ao desenvolvimento tecnológico, e o culto às armas, à violência, ao garimpo ilegal, à mineração nas terras indígenas.

De um lado estão políticos respeitados, honrados, de diversos partidos, de Fernando Henrique Cardoso a Marina Silva, juristas, cientistas, compositores, músicos, artistas, acadêmicos das mais diferentes áreas.

Do outro está gente desqualificada como Ricardo Salles, Damares Alves, Carla Zambelli, Bia Kicis. E pitbulls como Daniel Silveira e Roberto Jefferson.

Todo o episódio dos últimos dias envolvendo Roberto Jefferson foi exemplar, simbólico. Escancarou o que está em jogo: a escolha entre a civilidade e o bangue-bangue.

A ofensa de Jefferson contra a ministra Carmen Lúcia – esse ícone de lucidez, inteligência, honradez, chamada de “prostituta arrombada” – tem tudo a ver com “o apartamento pra comer gente” e o “pintou um clima” de Jair Bolsonaro. Com o “passar a boiada” do então ministro do Meio Ambiente, o motosserra de ouro Ricardo Salles. Com as fantasias loucas de “vi Jesus na goiabeira” e da história sem pé nem cabeça sobre as crianças de Marajó de Damares.

Os tiros e a granada contra os policiais têm absolutamente tudo a ver com as ofensas e os ataques de Bolsonaro ao longo destes últimos quatro anos aos tribunais superiores, a seus ministros, ao Judiciário.

Como escreveu Ricardo Noblat, Jefferson, canastrão como sempre, exagerou no papel combinado com Bolsonaro ao recorrer às armas contra os policiais, e com isso o tiro – o simbólico – que eles pretendiam dar na ordem e na democracia atingiu não só o pé como também o peito do presidente-candidato.

A extrema-direita brasileira tem um histórico de tiros no pé. Basta lembrar o planejado atentado ao Riocentro na véspera do 1º de maio de 1981.

Para quem ainda não tinha percebido toda a obviedade, Jefferson colocou todos os pingos nos is. Desenhou.

A opção no dia 30 é entre essa frente ampla pela democracia e o espírito pitbull de Daniel Silveira e Roberto Jefferson.

Civilização ou barbárie.

O cientista social Marco Aurélio Nogueira definiu com precisão: “Votar em Lula é, no mínimo, uma medida cautelar, uma manifestação de cuidado e preocupação com o Brasil. É uma aposta na democracia, na civilidade, na liberdade, na busca de igualdade. No futuro.”

Este texto foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 26/10/2022.

Ao republicá-lo aqui, acrescento a íntegra do artigo de Marco Aurélio Nogueira.

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Votar pelo futuro

Por Marco Aurélio Nogueira, O Estado de S.Paulo, 22/10/2022

Não é correto nem digno, nesta hora dramática em que vivemos no Brasil, silenciar sobre o que está em jogo no segundo turno das eleições presidenciais.

Não estamos diante de uma disputa qualquer, de uma competição entre dois candidatos que se posicionam com um idêntico respeito pelas regras democráticas. Lula e Bolsonaro são pontos antípodas de uma disputa que transcorre de modo imperfeito, sem muita clareza e sem densidade. O embate entre eles se tem feito em tom de ataques recíprocos, sem preocupações programáticas ou de esclarecimento público. Tudo tem sido levado para o palco eleitoral – da liberdade religiosa às convicções morais –, o que dificulta o discernimento e as escolhas da população.

A batalha eleitoral de 2022 é entre democracia e autoritarismo, civilidade e barbárie.

O que está em disputa hoje, muito mais do que em outros momentos de nossa experiência como Estado democrático, é uma ideia de País e, sobretudo, de governo.

O Brasil não vai acabar, por mais que esteja à beira do precipício. Tem resiliência e recursos para seguir em frente. Mas pode continuar piorando, o que será trágico. Estamos ficando para trás em diversos setores estratégicos, como o ambiental, o científico e o tecnológico. Áreas sociais estratégicas – saúde e educação, antes de tudo – foram desconstruídas e abandonadas à própria sorte. Nossa imagem no mundo nunca foi pior, consequência de uma política externa feita com rancor, sem diplomacia e baseada em postulações ideológicas. As agressões à democracia, às instituições do Estado, à civilidade, ao decoro público foram tantas que, se continuarem a se repetir, farão do Brasil uma caricatura.

A disputa pelo imaginário brasileiro mostra que a sociedade, além de dividida, está atarantada. A direita reacionária se projetou, mobilizando medos e fantasias regressistas, que açulam o “conservadorismo”. Do lado oposto, a agenda é vasta, há muitas pautas parciais, bastante valorização de direitos e diferenças, mas falta um consenso consistente sobre o País. A ausência de uma voz democrática coesa e forte se faz sentir de forma pungente, deixando a sociedade sem saber que futuros podem ser cogitados como possibilidade concreta.

Nos últimos anos, a democracia brasileira se fragilizou muito. Instituições importantes foram feridas, houve uma desconstrução generalizada dos órgãos de Estado, políticas públicas foram abandonadas, a polarização política cresceu expressivamente e foi aceita como “normal” pelos próprios democratas, que pouco fizeram para desativá-la.

Em termos mais imediatos, o próximo ciclo não vem embalado por ventos animadores. Poderemos entrar numa situação melhor, com certeza, mas nem por isso nossos problemas desaparecerão. A partir de 2023 a situação será complexa, de governança difícil. Irá se abrir um período de reconstrução, que também terá de ser de pacificação. Sociedades politicamente divididas são frágeis, impotentes. Precisamos cimentar as fendas que se abriram, recuperar os alicerces. Quanto antes organizarmos nossa democracia e alcançarmos pontos de convergência entre os democratas, melhor.

Os democratas sempre perderão enquanto não se articularem com competência, enquanto não trabalharem com afinco por uma democracia com lastro e livre de polarizações venenosas, enquanto não lutarem para fazer com que a população volte a confiar na política e nas instituições que nos governam.

O voto em Lula no segundo turno está além de disputas ideológicas, partidárias ou identitaristas. É um voto estratégico, “quente”, carregado de esperança e de confiança em dias melhores. Um voto que acredita ser indispensável abandonar polarizações improdutivas que nos amarram ao passado. Precisamos construir plataformas para viabilizar sonhos comuns.

É, também, um voto de repúdio a um governo que maltratou o Brasil e seu povo, desorganizou o Estado, desmontou políticas sociais que a duras penas cumpriam uma função positiva. Um governo que, se permanecer, comprometerá o futuro.

Todo voto é uma aposta. Ao depositá-lo na urna, acreditamos estar fazendo o melhor, o mais correto, o mais adequado, na expectativa de que nossa escolha ajude à coletividade e integre, desse modo, uma escolha coletiva. Eleições não decidem tudo, não podem resolver os problemas de nenhuma sociedade. Mas sempre contêm uma expectativa de arejamento, de mudança para melhor, de alcance de uma governança qualificada. Eleições não existem para agradar a todos. Há os que vencem e os que perdem, o que é bom para uns pode não ser bom para outros. Mas, quando transcorrem sem atropelos, é por meio delas que as sociedades processam seus conflitos.

Hoje, o voto é o principal recurso de que dispomos para virar uma página sombria da história brasileira.

Votar em Lula é, no mínimo, uma medida cautelar, uma manifestação de cuidado e preocupação com o Brasil. É uma aposta na democracia, na civilidade, na liberdade, na busca de igualdade. No futuro.

26/10/2022

Este post pertence à série de textos e compilações “Ou Lula ou o horror”.

A série não tem periodicidade fixa.

“Só há uma opção nas eleições brasileiras – para o país e para o mundo”, diz a revista científica Nature. (7)

Dezenas de especialistas no combate à corrupção anunciam o apoio a Lula no segundo turno. (6)

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