A Ucrânia e a solução Kissinger

A guerra bate à nossa porta com o reconhecimento pela Rússia de províncias rebeldes na Ucrânia (Donets e Luhansk), e a escalada da crise tornou extremamente atual um artigo de Henry Kissinger de 2014. À época, as relações entre os dois países deterioraram-se com a vitória do Euromaidan, responsável pela queda do então presidente ucraniano pró Rússia.

Vladimir Putin então anexou a Crimeia e as duas províncias se declararam independentes a partir da disposição do novo governo ucraniano de se integrar à OTAN e à União Europeia.

No alto da experiência de quem viu seu país entrar em quatro guerras – das quais se retirou de três de forma unilateral -, o ex-secretário de Estado do governo Nixon dizia em seu artigo “Como termina a crise na Ucrânia”, publicado no Washington Post, que o teste da política não é como uma guerra começa, mas sim como termina.

Com a autoridade política e intelectual de quem conduziu com sucesso as articulações para o restabelecimento das relações diplomáticas entre os Estados Unidos e a China, Kissinger vislumbrou que a única possibilidade para a Ucrânia prosperar como nação independente era não ser “um posto avançado”, nem do “Oriente” e nem do “Ocidente”.

A solução Kissinger entendia que a Ucrânia não poderia ser uma plataforma militar, apontada para a Rússia ou para os países da Aliança Atlântica. Ao contrário, deveria ser uma ponte entre os dois blocos. Baseava-se no precedente da Finlândia do pós Segunda Guerra. Aliada da Alemanha no último conflito mundial, este país conquistou estabilidade e se afirmou como nação democrática e independente a partir de uma postura de neutralidade entre o bloco soviético e os países da OTAN.

A Finlândia atravessou todo o período da guerra fria e chegou aos tempos atuais sem ameaças à sua soberania. A neutralidade dos finlandeses até hoje contempla o interesse dos russos de não ter em sua fronteira norte tropas e artefatos militares da OTAN apontadas para seu país.

Desde o Euromaidan, Kissinger se opôs à entrada da Ucrânia na OTAN. Entendia existir laços históricos entre a Ucrânia e Rússia que poderiam ser utilizados como um ativo, com o território ucraniano desempenhando o papel de nação ponte entre a Rússia e a Europa Ocidental. Kissinger tinha razão ao enumerar fatos de uma história em comum.

De fato, Kiev foi a capital da Rússia do século IX ao século XII. A Rússia, como estado unificado, passou a existir quando o príncipe Oleg uniu as tribos eslavas do norte – os rus – com as tribos do sul. Essa união gerou o estado denominado de Rússia de Quieve. Até hoje a Ucrânia é um país bilíngue com sua parte oriental adotando mais o idioma russo – língua de mais de 70% de sua população – e parte ocidental falando mais o ucraniano.

Com o colapso da União Soviética, a Ucrânia passou a ser parte do conflito entre a Rússia e a OTAN. Entender por que esse contencioso chegou à situação atual, com chances reais de desembocar em uma guerra mundial, requer viajar no tempo, até os primórdios da era Putin.

Inicialmente, o atual presidente entendia que a Rússia tinha uma vocação europeia, como afirmou nas comemorações dos 60 anos do fim da II Guerra Mundial. Suas referências internacionais eram então o presidente George Bush e o primeiro-ministro inglês Tony Blair.

Putin voltava seus olhos para a Europa, assim como Pedro o Grande quando construiu São Petersburgo em 1703. A vocação europeia levaria o atual presidente russo a propor o ingresso de seu país na aliança atlântica, no encontro da OTAN de 2008 realizado em Bucareste, do qual participou como convidado.

Sua ousadia pegou Bush e demais lideranças dos países do tratado norte de surpresa.  Sua propositura foi feita depois que já tinha ocorrido a “Revolução Rosa” da Georgia e a “Revolução Laranja” da Ucrânia. Mas a OTAN fez cara de paisagem, tratando burocraticamente o pedido de Putin até ele se tornar sem sentido.

O marco temporal de sua mudança em relação ao bloco Ocidental é o início do segundo mandato de George Bush, o filho, quando a OTAN avançou para os países bálticos e concedeu o status de país-candidatos à Ucrânia e à Georgia.

A gênesis da crise atual estão nesses acontecimentos, ao lado do renascimento da intenção de Putin da fazer a Rússia a voltar a ser uma grande potência mundial, com seu o sonho de reconstruir o império dos tempos do czarismo. Esse é o sentido de sua crítica a Lenin no seu último discurso, porque o líder bolchevique deu status de República à Ucrânia na então União Soviética.

Aqui, um giro de 180 graus. Nas suas novas aspirações, a Ucrânia já não seria um estado-ponte e seu território seria absorvido pela Rússia. Mas isso pode ser uma jogada para aumentar seu poder de barganha, quando todos começarem a negociar de uma maneira séria.

Até 15 dias atrás, o resgate do acordo de Minsk de 2014 parecia a solução aceitável para a Rússia mas, à exceção de Emmanuel Macron, a proposta foi tratada com desdém e possivelmente inviabilizada pela retórica beligerante de Joe Biden e Boris Johnson.

Retomar o espírito da solução Kissinger passa a ser a saída mais virtuosa – e possível –   para a crise não desaguar numa guerra total. Tanto Biden como Putin estão diante do desafio de responder à questão central do artigo de Kissinger. Saber como termina a guerra para ela não acabar mal para todos.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 23/2/2022. 

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