A música que enfeitiçou uma geração

Desde que li a notícia da morte de Gary Brooker, não paro de ouvir “A Whiter Shade of Pale”, a canção de 1967 que fez um extraordinário sucesso no mundo todo. Seja botando a música para tocar no YouTube na TV, com as imagens na telona e o bom som do aparelhão, seja ela pairando na minha cabeça, quando não há absolutamente nenhum aparelho elétrico-eletrônico ligado.

Annie Lennox fez uma magnífica gravação da música, e o vídeo oficial é uma beleza, uma coisa onírica, circense, em que há um belo cavalo branco que às vezes parece um unicórnio, e a própria cantora, linda, maravilhosa, com um rosto um tanto ghostly, fantasmagórico, canta suspensa no ar, em algo mais parecidso com um balanço infantil do que um trapézio.

Algum neguinho esperto pegou essa gravação da Annie Lennox e tascou no YouTube com imagens de um filme de época com Colin Firth, Kristin Scott Thomas e, em especial, Jessica Biel. A mistura da canção de 1967 com as imagens de Bons Costumes/Easy Virtue, de 2008, baseado em peça do gênio Noël Coward, ficou perfeita, como se uma tivesse nascido para a outra, feito Eduardo e Mônica, goiabada e queijo, feijão e arroz, belas melodias e uma certa nostalgia que acaba com frases tipo “não se fazem mais canções como esta”.

Confesso que vi o clipe que está no YouTube misturando “A Whiter Shade of Pale” na voz de Annie Lennox, a letra legendada na tela, com as imagens do filme de Stephen Elliot algumas vezes achando que aquilo havia sido filmado específicamente para ilustrar a canção. Em minha defesa, teria a dizer que todas as duas, três ou quatro vezes em que houve esse momentery lapse of reason da minha parte eu estava razoavelmente alcoolizado, bem no fim da noite, antes de ir dormir.

(Sempre tive vontade de usar em um texto essa expressão maravilhosa, um momentário lapso de razão; afinal achei…)

***

Outro dos belos vídeos que surgem no YouTube, e que andei vendo e ouvindo sem parar nestes últimos dias, é uma apresentação na Dinamarca, em 2006, do próprio Procol Harum, a banda criada por Gary Brooker, acompanhada por uma baita de orquestra sinfônica. Só o solo de fagote, por exemplo, já valeria o espetáculo. É um show em um parque, na verdade um bosque, com uma organização, uma civilidade, uma perfeição nórdica – o Procol Harum, com Gary Brooker cantando e solando um piano de cauda daqueles que o Keith Jarrett não recusaria, num palco sob o que parece uma tenda medieval de reis abastadíssimos, diante de uma multidão comportada e confortavelmente sentada em cadeiras dispostas sobre o gramado, em meio a uma vegetação exuberante.

Gary Brooker está uma belíssima figura, com o cabelo e a barba branquinhas de tudo, do alto de seus então joviais 61 anos de idade. (Ele é de 1945, exatamente o ano de Carly Simon, Elis Regina, Eric Clapton, Gal Costa, Gonzaguinha, Ivan Lins, Neil Young, Renato Teixeira, Rod Stewart, Stephen Stills, Van Morrison – e do meu irmão Geraldo. Uns pouquíssimos anos mais novo do que John Lennon (de 1940), Art Garfunkel, Bob Dylan, David Crosby, Erasmo Carlos, Joan Baez, Nana Caymmi, Paul Simon (todos de 1941).

Nessa apresentação na Dinamarca, ele está com tudo: bela figura, belíssima voz, um extraordinário pianista.

Quando Gary Brooker morreu, aos 76 anos, no dia 22 de fevereiro, Mary estava em Belo Horizonte, visitando a mãe e o irmão. Depois que ela voltou, dias atrás, em 5 de março, fiquei mostrando para ela esses clipes que não parei de ver nos últimos dias todos. Depois que mostrei a gravação de que mais gosto de “A Whiter Shade of Pale”, a de Johnny Rivers, no extraordinário álbum Realization – da qual ela, é claro, se lembrava, embora talvez vagamente –, Mary fez uma defesa enfática da cover de Johnny Rivers sobre a belíssima gravação orquestral na Dinamarca.

Disse ela que a gravação de Johnny Rivers realça o que a canção tem de melhor, de extraordinário, que é exatamente a junção da melodia magistral, bachiana, com a pegada pop que o órgão, o piano e, em especial, a bateria, colocada pelos engenheiros de som da Califórnia em primeiro plano, fazem brilhar. A versão orquestral, embora lindíssima, sinfônica, esplendorosa, esconde exatamente isso que a canção tem de melhor, a junção da melodia bachiana com a forte, vibrante, aura pop.

Adorei a exegese – embora, é necessário confessar, com alguma pontadinha de irritação. Diabo: não basta a mulher ser o melhor e mais respeitável texto da minha própria cama quando o tema é a seriedade da política – agora ela quer avançar também pra cima da praia que é mais minha, a música e o cinema?

Diacho: daqui a pouco vai fazer um site de filmes!

Não conseguir ser o melhor texto da sua própria cama era uma brincadeira que o Nelson Rodrigues fazia para irritar o Dias Gomes, o senhor Janete Clair… Adoro essa gozação. Mas tudo bem. Agora, brincadeiras à parte, vamos em frente.

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Nestes últimos dias todos, de fato não parei de ouvir “A Whiter Shade of Pale”. Mas só hoje arranjei tempo e jeito de rever a maior homenagem que a maravilhosa canção de Gary Brooker, Keith Reid e Matthew Fisher recebeu – bem mais importante, acho eu, que os discos de ouro e o fato de ter tido dezenas de regravações.

É a sequência do filme The Commitments (1991), de Alan Parker, em que Steven, o tecladista da banda que está sendo formada por Jimmy, toca a canção no órgão de uma grande igreja de Dublin.

Jimmy (o papel de Robert Arkins) entra na maravilhosa igreja, dá um oi para uma senhora que está cuidando do local onde são acesas as velas junto da entrada, e sobe para o mezanino onde Steven (Michael Aherne) começa a tocar os primeiros acordes da melodia que enfeitiçou todos, todos, absolutamente todos nós.

Jimmy: – “Jimmy: Baita som, né?”

SteveN: – “É…Gostaria que meu avô tivesse um desses (refere-se ao órgão da igreja) que pudesse nos emprestar… Beleza de introdução, né?”

Jimmy: – “Eles copiaram de Marvin Gaye.”

Steven: – “Ele copiou de Bach!”

Jimmy sabe de absolutamente tudo sobre toda a música pop do mundo, mas faz uma cara de paisagem diante da menção a Johann Sebastian.

Corta, e vemos que o padre Molloy (Mark O’Regan) está chegando naquele momento à igreja. Está caminhando pela área central, em direção à escada, próxima ao altar, que leva ao mezanino em que estão os dois garotões.

Steven vai tocando e começa a cantar: – “We skipped the light fantastic…” Ao que Jimmy o corrige: – “We skipped the light fandango!”

E a partir daí os dois cantam juntos os primeiros versos da canção:

“We skipped the light fandango
Turned cartwheels ‘cross the floor
I was feeling kinda seasick
The crowd called out for more”.

E é aí que Jimmy, o garotão que sabe tudo, absolutamente tudo de música popular, diz a frase maravilhosa, perfeita:

– “Poxiest bleeding lyrics ever writen.”

Alguma coisa perto de “a letra mais doidona que jamais foi escrita”.

E Steven, tocando no órgão a melodia esplendorosa, diz: – “Uma das 16 virgens vestais indo para o litoral. O que diabo isso significa?”

Corta; tomada do padre Malloy, com um grande sorriso no rosto, dirigindo-se aos garotões: –  “Eu também nunca entendi isso! É uma letra muito peculiar!”

A letra muito peculiar de “A Whiter Shade of Pale”, uma das letras mais doidonas que jamais foram escritas, vai aí abaixo. Junto com uma tradução que achei via Google e copiei, que eu não sou louco de tentar fazer eu mesmo a tradução desse trem doido.

A Whiter Shade of Pale

We skipped the light fandango
Turned cartwheels ‘cross the floor
I was feeling kinda seasick
The crowd called out for more
The room was humming harder
As the ceiling flew away
When we called out for another drink
The waiter brought a tray

And so it was that later
As the miller told his tale
That her face, at first just ghostly
Turned a whiter shade of pale

She said “there is no reason”
And the truth is plain to see
But I wandered through my playing cards
Would not let her be
One of sixteen vestal virgins
Who were leaving for the coast
And although my eyes were open
They might have just as well’ve been closed

And so it was that later
As the miller told his tale
That her face, at first just ghostly
Turned a whiter shade of pale

And so it was that later

 

Um Tom Mais Claro de Palidez

Nós dançamos o suave fandango

Girando pelo salão

Eu estava me sentindo meio enjoado

Mas a multidão pedia mais

O barulho no salão estava ficando maior

Enquanto o teto voava para longe

Quando pedimos mais uma bebida

O garçom trouxe a bandeja

 

E foi aí que mais tarde

Enquanto o moleiro contava sua história

O rosto dela, a princípio apenas fantasmagórico

Transformou se em um tom mais claro de palidez

 

Ela disse: Não há razão nenhuma

E a verdade é simples de ver

Mas eu me distraía no meu jogo de cartas

E não deixaria ela ser

Uma das dezesseis virgens vestais

Que estavam partindo para o litoral

E embora meus olhos estivessem abertos

Eles podem muito bem ter estado fechados

 

E foi aí que mais tarde

Enquanto o moleiro contava sua história

O rosto dela, a princípio apenas fantasmagórico

Transformou se em um tom mais claro de palidez

 

 

2 Comentários para “A música que enfeitiçou uma geração”

  1. Muito boa a sua análise sobre a musica. Nos dá informações relevantes sobre todo o contexto não muito esclarecidos em outras análises. Essa musica comprova o poder da musica sobre a letra. Muitas pessoas comentam que é uma musica apaixonante referindo-se ao conjunto de música e letra. Na realidade a letra não inspira paixão mas sim a música.

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