Não foram poucos os que enterraram a terceira via após os movimentos erráticos dos pré-candidatos João Doria e Sérgio Moro. Teve funeral, com gente se divertindo diante das trapalhadas no chamado centro democrático. A questão é que não há como sepultar o que não nasceu. E é fato: inexiste hoje uma alternativa viável à polarização Jair Bolsonaro versus Luiz Inácio Lula da Silva. Pelo menos até aqui. Pode acontecer? Sim. Mas o tempo corre.
Esse segmento, que em tese teria uma avalanche de apoios daqueles que rejeitam Bolsonaro e Lula, foi incapaz de formatar conteúdo para se impor diante dos dois pólos. Em vez de propostas para as questões aflitivas do país – inflação, desemprego, miséria e fome, saúde e educação precárias, danos ambientais quase irreversíveis, retrocessos civilizatórios, entre outras -, único caminho para enfrentar populistas, o que se vê são pré-candidatos irredutíveis, que falam em união mas não despregam os olhos do próprio umbigo.
A barafunda dos últimos dias é a mais límpida tradução disso.
Do PSDB partiram os primeiros faniquitos. O agora ex-governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, derrotado por João Doria nas prévias tucanas, ameaçou deixar o partido e disputar a Presidência pelo PSD de Gilberto Kassab. Convencido pela ala anti-Doria, encabeçada pelo deputado Aécio Neves (MG) e pelo senador Tasso Jereissati (CE), Leite ficou no PSDB para correr por fora. Ou seja, passar a perna em Doria com o apoio de parcela da legenda.
Doria acusou o golpe. Ameaçou romper o acordo que firmara com o seu vice, Rodrigo Garcia, que ele trouxe do então DEM para o PSDB, continuar à frente do governo de São Paulo e desistir da candidatura ao Planalto. A jogada deu a ele o apoio formal do partido ao seu nome, expresso em carta do presidente da legenda, Bruno Araújo, que se apressou em dizer que o documento pró-Doria que assinou não tem qualquer valia.
Além de problemas adicionais para a sua dificílima campanha, Doria abriu feridas quase incicatrizáveis que podem tirar de vez o PSDB do trono paulista, onde reina há 28 anos. Sua opção por Garcia, o mesmo que ele agora quase deixou na mão, afastou Geraldo Alckmin da disputa pelo governo de São Paulo quando o ex liderava todas as pesquisas. Para alegria de Lula, que, com Alckmin encantado em ser seu vice e fora do páreo paulista, vê chances de emplacar o PT, pela primeira vez, no Bandeirantes.
Moro, o terceiro colocado nas pesquisas, pontuando entre 6% e 8%, escancarou sua imaturidade política. Abandonou o Podemos, ao qual se filiara há quatro meses para ser candidato, e migrou para o União Brasil. O acordo com a nova sigla previa o abandono da pré-candidatura à Presidência e uma vaga para disputar a Câmara dos Deputados. Em cima da hora, Moro deu um cavalo-de-pau negando o acerto selado no dia anterior. Gerou um pedido de impugnação de sua filiação ao União Brasil, endossado pela turma do DEM, sob a liderança do ex-prefeito de Salvador, ACM Neto, que, se aprovado, pode deixar o ex-juiz e ex-ministro na condição de ex-candidato – sem legenda e, portanto, impedido de disputar qualquer cargo nas eleições de 2022.
Leite e Moro utilizaram táticas semelhantes. Imaginam que mais à frente podem ser ungidos candidatos pela necessidade de o centro ter um nome consensual. Moro apoia-se na condição de melhor pontuado nas pesquisas. Leite, na capacidade aglutinadora que se auto-invoca. Doria, um gestor de reconhecida competência mas com alta rejeição até no estado que governa, se agarra na legalidade das prévias.
Na prática, os três passam ao eleitor um recado torto, avesso à boa política que o centro democrático gostaria de ter como marca. Usam a traição como método, desunem em nome da união.
No meio desse imbróglio, há quem garanta que Bolsonaro lucra com a saída de Moro – sua turma até comemorou. Na outra ponta, o PT crê que a ausência de candidatos ao centro pode acelerar a decisão desse campo em torno de Lula. Na intermediária, dobram-se as apostas em Simone Tebet, que reforçou suas credenciais ao passar longe das presepadas da semana. Enxerga-se nela a melhor chance de a anti-polarização encorpar.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 3/4/2022.
Um detalhe: Doria não fez camoanha, até agora. Tem muito a mostrar sobre seu governo, inclusive a despoluiçãp quase completa do rio Pinheiros. Ele tem uma boa oratória e certamente virá com um jeito mais simpático de se mostrar aos eleitores. Quem merece ser criticado é o Eduardo Leite e sua turminha, liderada pelo inefável Aécio Neves. Na nossa Minas Gerais tem uma expressão que explica o neto do doutor Tancredo: bananeira que já deu cacho. Veremos. Eu, modestamente, defendo de há muito uma aliança Doria-Michele, e agora com a possibilidade do apoio do Moro. Se Doria sair da disputa, o que acho improvável, Leite não será seu substituto, pois aí, sim, o partido diminuirá ainda mais sua importância, rachando de forma assustadora.
Fiz uma confusão: em vez de Simone escrevi Michelle.
Análise aguda e objetiva. Muito bom.