É cristalinamente claro, é o óbvio mais ululante que o pior da invasão da Ucrânia por ordem de Vladimir Putin é o sofrimento dos ucranianos.
Sim, também é claro, é óbvio que há muitos outros danos mundo afora. O ataque de Putin espalhou medo entre milhões e milhões de europeus. Medo de uma guerra nuclear entre milhões de pessoas em todo o planeta. Desorganizou a economia mundo afora, provocou uma escalada nos preços de tudo, absolutamente tudo. Prejudicou e vai continuar prejudicando durante muito tempo a vida de bilhões de pessoas.
Mas, de todos os efeitos da invasão, o pior é o que está se abatendo sobre os quase 45 milhões de ucranianos.
Só porque um déspota, um ditador que se julga Pedro, o Grande, ou Ivan, o Terrível, resolveu bombardear e invadir um país livre, independente, democrático, milhões e milhões de pessoas estão perdendo suas casas, seus parentes, suas vidas.
Isso é o pior de tudo. É cristalinamente claro, é o óbvio mais ululante que possa existir.
Eu sei disso, assim como sabem em sua maioria as pessoas, mundo afora, que não passam pelas necessidades mais básicas, os afortunados que têm teto sobre suas cabeças à noite e prato de comida na mesa durante o dia.
Para mim, no entanto, dói especialmente – quase tanto quanto pensar nos milhões de ucranianos agora sem teto, sem prato de comida, sem banheiro, sem aquecimento – ver que boa parte da esquerda brasileira acha justa a invasão da Ucrânia.
Justa – ou, se não absolutamente justa, no mínimo justificável. Explicável. Compreensível.
E nisso ela se distancia da esquerda dos demais países do Ocidente, que condena duramente a guerra de Putin.
Aqui, boa parte da esquerda externa como argumentos barbaridades do tipo:
Ah, os Estados Unidos e a Otan estavam colocando em risco a segurança da Rússia. Os Estados Unidos e seus aliados da Europa Ocidental estavam avançando para perto das fronteiras da Rússia.
Ah, mas e daí que invadiram a Ucrânia? Os Estados Unidos não invadiram o Iraque, não atacaram a Líbia?
Ah, mas tem que ver pelo lado da Rússia. Eles estavam sendo encurralados. Têm todo o direito de reagir.
Meu estômago se embrulha quando vejo um petista, um psolista, um pedetista dizer essas insanidades.
Que uma pessoa pense essas insanidades já é de embrulhar o estômago. Que tenha a coragem de dizer isso, achando que está cheio de razão, é de matar.
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O conceito de esquerda, para mim, tem – ou pelo menos tinha – a ver com generosidade. Humanismo. Amor. Empatia. Estima. Solidariedade.
Os esquerdistas brasileiros que hoje defendem, de alguma maneira, a criminosa invasão da Ucrânia pelas tropas e bombardeios russos não tomam essa posição por generosidade, humanismo, amor, empatia, estima, solidariedade – mas simplesmente pelo ódio figadal que têm pelo Grande Satã, pelo Imperialismo Norte-Americano.
É um ódio tão figadal, e portanto tão cego, tão burro, tão desprovido de lógica que ele se manifesta exatamente da mesma forma seja o Grande Satã presidido por Donald Trump, aquele idiota machista, retrógado, racista, supremacista, autoritário, seja por Barack Obama ou Joe Biden, políticos progressistas, de mente aberta, democráticos, anti-racismo, anti-supremacismos.
Sempre que vejo a manifestação de algum esquerdista brasileiro em defesa da guerra de Putin – ele mesmo um direitista babento, nojento, tradicionalista, machista, misógino, anti-minorias –, me lembro do marido de uma amiga, um petista-cutista de coturno relativamente alto, que dava urros de alegria diante do espetáculo do ataque terrorista às Torres Gêmeas, que deixaram centenas de civis mortos.
Ah, que alegria, que maravilha, os filhos da puta dos americanos imperialistas estão aprendendo uma lição!
Viva a Morte! Viva as bombas! Viva a destruição!
E é impressionante que eles não percebam que, assim, escancaram o que verdadeiramente são: idênticos a Jair Bolsonaro!
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Três belos artigos, publicados no mesmo dia, este sábado agora, 12/3, em O Globo, mostram os argumentos lógicos que destroem essas tentativas dos esquerdistas brasileiros de justificar o injustificável, de, no mínimo, relativizar o total absurdo que é a invasão da Ucrânia por determinação do czar Vladimir, o Puto Louco
Os textos – de Carlos Alberto Sardenberg, Pablo Oretllado e Eduardo Affonso – são preciosos. Transcrevo-os aqui. Acho fundamental que este site reproduza esses textos admiráveis sobre a esquerda que apóia o imperialismo, como diz o título de um deles.
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É a Rússia, não a URSS
Por Carlos Alberto Sardenberg, O Globo, 12/3/2022
Muita gente, lá fora e aqui, está cometendo um grande equívoco: pensar a Rússia como se fosse a União Soviética. Não é.
No tempo da URSS, Moscou tinha uma mensagem não apenas para a Europa, mas para o mundo todo. O marxismo soviético era uma construção completa: definia desde a organização da sociedade política, da produção e distribuição de riqueza até a vida cultural.
Mais importante: essa ideologia era partilhada mundo afora. Nos países já no âmbito da URSS, havia partidos, militância e apoios locais ao marxismo soviético.
Não se tratava de uma “simples” dominação externa, mas de identidade ideológica, pelo menos de parte das populações.
Mais ainda: em muitos países que estavam na órbita do Ocidente, havia partidos comunistas de sólida representação popular. Itália e França, por exemplo.
Noutros países, havia PCs ilegais, mas muito atuantes, especialmente no setor cultural.
Em Moscou, existia uma universidade onde só estudavam alunos de outros países. Uma escola séria, competente no ensino de História, política e cultura, do ponto de vista do marxismo soviético.
A Guerra Fria, portanto, era uma disputa entre duas visões de mundo articuladas.
Uma dessas visões simplesmente veio abaixo. O socialismo soviético morreu —e por ação de suas populações locais. Reparem: o muro ruiu sem que o Ocidente precisasse dar um tiro.
Não houve invasão do Leste, nenhuma conquista. Apenas as populações locais, quando puderam ver o que acontecia no outro lado do mundo, decidiram mudar de vida e de regime. Para o marxismo soviético, foi uma vergonha como os alemães orientais correram para comprar Coca-Cola em Berlim.
Como os ex-socialistas se arrumaram? O pessoal da Europa do Leste entendeu rapidamente que o melhor negócio era entrar para a União Europeia —um mar de prosperidade. Bastava olhar como Espanha e Portugal saíram da pobreza com a entrada na UE.
A China, sempre mais competente, já percebera a mudança — e introduzia o capitalismo e a propriedade privada, base de sua ascensão, ainda que com forte controle estatal.
As opções ficaram assim, simplificando: qual capitalismo se vai seguir, com mais ou menos Estado?
Na política, também simplificou-se: ou a democracia ou a ditadura.
A Rússia de Putin é o quê? Um capitalismo de compadres, crony capitalism, e uma ditadura assassina. E um maluco que se acha na “Grande Rússia”.
Para o ex-soviéticos, bastava entrar na União Europeia em busca de prosperidade. Não se interessavam pela Otan, muito menos por hostilizar a Rússia.
Por que, num determinado momento, resolveram entrar para a Otan? Por causa das ameaças de Putin, quando ele conseguiu dar uma arrumada na Rússia.
Em resumo, a URSS tinha uma proposta para o mundo — um baita equívoco, como se viu depois. Mas brilhou durante muito tempo.
A Rússia de Putin oferece o quê? Ameaças imperialistas.
Portanto chega dessa história de avanço da Otan para o Leste. Foram as populações do Leste que, democraticamente, fizeram sua opção.
Azar da Ucrânia, que se atrasou com aquele ditador pró-russo. Aliás, reparem: só ficam com a Rússia os ditadores, incluindo os nossos aqui da América Latina.
A Rússia não foi ameaçada. Ela é a ameaça. E Putin cairá do mesmo modo que caíram os outros: pela reação de seu próprio povo.
Chega de comparar a invasão da Ucrânia com Iraque, Líbia, Síria, Afeganistão — Estados incentivadores de terrorismo. EUA e Europa têm seus pecados, mas não se pode compará-los à Rússia de Putin.
A Europa abriu-se a negócios com as empresas russas. Companhias e investidores ocidentais foram para a Rússia. Empresas russas se instalaram na Europa.
Por que Putin simplesmente não deixou essa integração prosseguir? A melhor hipótese: ele temia que a ligação “excessiva” com o Ocidente mostrasse aos russos onde a vida é melhor.
E Putin simplesmente não podia se juntar à União Europeia. Seu regime não passa nos critérios de democracia e legislação de direitos humanos.
Sobrou o quê? Uma tentativa de formar um império de ditadores.
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A esquerda que apóia o imperialismo
Por Pablo Ortellado, O Globo, 12/3/2022
É perturbador acompanhar o debate na esquerda sobre a invasão à Ucrânia. Logo no começo do conflito, o perfil do PT no Senado no Twitter publicou nota dizendo que “condena a política de longo prazo dos EUA de agressão à Rússia e de contínua expansão da Otan em direção às fronteiras russas”. Depois de ser criticada, a nota foi apagada, e manifestações individuais de senadores petistas contrários à invasão foram retuitadas. Mas a primeira nota ter saído mostra que forças relevantes no partido consideram a invasão justificada. A nota oficial do PT, publicada dois dias depois, reflete bem essa ambivalência, condenando uma solução militar, mas não a invasão: “Entendemos que a solução do contencioso entre Rússia e Ucrânia deve se dar de forma pacífica, utilizando todas as possibilidades de mediação em fóruns multilaterais”. Em sites de esquerda, predomina o apoio à invasão russa, em clima de torcida.
Para além do passado soviético, com que o atual regime não tem identidade política nem ideológica, é difícil entender a simpatia de parte da esquerda pela Rússia. O país não tem um regime socialista, mas uma economia capitalista bastante desigual, entre as mais desiguais da Europa. A Rússia também tem uma história imperialista de desrespeito à soberania e à autodeterminação dos seus vizinhos, já tendo invadido a Geórgia (em 2008) e a própria Ucrânia (na região da Crimeia, em 2014).
As violações aos direitos humanos lá são tão numerosas que é difícil resumi-las. A Rússia não respeita a liberdade de associação; persegue e impede o trabalho das mais tradicionais e respeitadas ONGs; dissidentes e opositores são presos, alguns assassinados, mesmo no exílio; o governo controla a imprensa; persegue e multa veículos; prende e mata jornalistas; a tortura nas forças policiais e militares é uma prática disseminada e tolerada; a população LGBTQIA+ não tem direitos civis básicos e é perseguida por agentes do Estado; e as eleições, embora aparentemente vencidas por Putin, são mesmo assim fraudadas, apenas para demonstrar força.
Se não é por simpatia pelas virtudes sociais e políticas do regime, a defesa da invasão por parte da esquerda parece se dar por razões geopolíticas, pelo efeito positivo de fazer emergir um mundo mais multipolar. Essa é, pelo menos, a tese mais frequente dos intelectuais e comentadores de esquerda que defendem a invasão.
O argumento é que a Otan, a aliança militar que na Guerra Fria se opunha à expansão da União Soviética, promoveu o atual conflito ao se ampliar para o Leste da Europa a partir dos anos 1990. Aproveitando a debilidade russa com o fim do regime socialista, a aliança incorporou países do antigo Pacto de Varsóvia e mesmo fronteiriços com a Rússia, como os bálticos. A tentativa recente da Ucrânia de aderir à Otan teria sido a gota-d’água para os russos, que teriam invadido o país num ato de defesa.
Os pressupostos do argumento estão corretos. De fato, a Otan aproveitou a fraqueza da Rússia para se expandir. Disso não deriva que os russos tenham o direito de violar a soberania ou de ameaçar a integridade territorial de um país vizinho para impedi-lo de entrar na União Europeia ou na Otan. Que direito legítimo é esse de um país invadir o outro em defesa de seus interesses geopolíticos? A esquerda, agora, em defesa de um mundo mais multipolar, passou a defender o imperialismo? Para extrair apenas uma consequência desse raciocínio: se um governo eleito no Brasil viesse a estreitar laços com a China, os Estados Unidos teriam o direito de invadir nosso território, já que a China estaria se expandindo a uma zona tradicional de influência americana?
Enquanto a maior parte da esquerda mundial protesta e repudia a invasão da Ucrânia, parte significativa da brasileira prefere defender o imperialismo. Se a esquerda quer manter um pouco de integridade moral, está na hora de romper com os defensores de ditaduras e impérios. Uma coisa é denunciar e combater todas as formas de imperialismo, inclusive o americano. Outra, bem diferente, é defender as ações imperialistas de um autocrata sanguinário, apenas porque equilibraria o jogo de forças no cenário mundial.
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Imagens que gritam
Por Eduardo Affonso, O Globo, 12/3/2022
A menina de 9 anos corre, nua e descalça, de braços abertos, gritando de dor, as costas queimadas por napalm. Outra menina, de uns 5 anos — a esqualidez não permite avaliar bem sua idade — , está no chão, também nua, o corpo pendido para a frente, observada de perto por um abutre. O menino de 3 anos, camiseta vermelha, calças azuis, sapatinhos bem amarrados, jaz de bruços, o rosto tocado pelas ondas.
Quem viu essas imagens não as esquecerá. Kim Phuc, vietnamita, fugia de um bombardeio, em 8 de julho de 1972. A sudanesa, cujo nome não se sabe, estava à beira da inanição e tomava fôlego, a caminho de um posto de saúde, em 11 de março de 1993. Aylan Kurdi, sírio, cruzava o Mediterrâneo numa viagem desesperada, até a madrugada daquele 2 de setembro de 2015.
As fotos não puseram fim ao horror no Vietnã, no Sudão ou na Síria, mas mostraram ao mundo a tragédia numa escala que qualquer ser humano consegue apreender. Milhões de vítimas são algo impalpável — uma criança ferida, morta ou à morte é um filho, um sobrinho, somos nós mesmos.
Hoje, com a guerra transmitida ao vivo, não só por jornalistas, mas por invasores e invadidos, algozes e vítimas, acompanhamos o clarão das explosões e o tremor que se segue, ouvimos os gritos. Tanto dos ucranianos que tentam escapar de seus agressores quanto dos que, na Rússia, desafiam a tirania — uns com a vida em risco, outros arriscando a liberdade.
Aqui, longe do front, travamos batalha menos sangrenta — a da manipulação. Ao contrário do que acontece com os russos, privados de informação independente (eles já usufruem os benefícios do “controle social da mídia”…), convivemos com a distorção autoinfligida.
Para relativizar as barbaridades cometidas pelo exército de Putin, dá-lhe whataboutism (“e o Iêmen?”, “e a invasão do Afeganistão?”), como se as analogias fossem cabíveis, como se erros passados chancelassem todos os erros por vir. E não fosse possível deixar passar a oportunidade de ostentar superioridade moral e intelectual (“é complexo…”, “vocês só veem um recorte; eu vejo o todo”). Ou de puxar brasa para outra sardinha (“os refugiados africanos não foram recebidos com a mesma solidariedade”).
Como escreveu o jornalista Rodrigo da Silva, “whataboutism é um método de propaganda que tem como objetivo diminuir o impacto de uma crítica manipulando a atenção para um adversário do alvo da crítica”. Não se trata apenas de uma falácia, mas de uma narrativa ideológica. De não se importar com Kims e Aylans — figurantes nessa cena, ovos quebrados para a omelete da geopolítica.
A idosa sozinha, numa cadeira de rodas, à espera de quem a leve para um abrigo, em Irpin. A janela protegida por uma barricada de livros; a criança que, de mãos espalmadas no vidro do trem, se despede do pai, em Kiev. A jovem grávida que desce, ensanguentada, as escadas da maternidade semidestruída em Mariupol. Nenhuma dessas imagens dará fim à guerra, nem converterá um “uorabautista”. Mas servirá para que, no futuro, saibam que droga de seres humanos éramos em 1972, 1993, 2015, 2022.
13/3/2022