O terceiro timoneiro

Ao alçar Xi Jinping à condição de “líder essencial” – status só concedido a Mao Tsé Tung e Deng Xiaoping -, o Partido Comunista da China volta a mergulhar nas águas profundas do culto à personalidade.

Essa prática foi violentamente criticada pelo russo Nikita Kruschev no seu célebre discurso do vigésimo congresso do Partido Comunista da União Soviética, quando denunciou os crimes de Stalin e criticou o culto ao então “guia genial dos povos”.

Xi engrossa agora uma lista de semideuses do socialismo real: Stalin na URSS, Mao na China, Hever Hodja na Albânia, Fidel Castro em Cuba, Nicolae Ceauşescu na Romênia e Kim iL Sung na Coreia do Norte.

O culto à personalidade na China tinha sido duramente golpeado quando Deng Xiaoping ascendeu ao poder no final dos anos 70 e implantou um modelo pautado mais na direção coletiva e menos na mitificação do seu principal dirigente. O “segundo timoneiro” da revolução chinesa – o primeiro foi Mao – inaugurou o modelo do “socialismo com características chinesas” e lançou as bases para a China se tornar a segunda potência mundial, por meio do seu programa das quatro modernizações para fortalecer os campos da agricultura, indústria, defesa e ciência e tecnologia.

Sofreu na pele os horrores da Revolução Cultural quando foi destituído de seus postos, e conhecia profundamente os desastres provocados pelo “Grande Salto para a Frente”, dos tempos de Mao. O culto ao “pensamento do camarada Mao” entrou em desuso e seus erros foram apontados pelo novo líder e pai da modernização da China. Seus dois sucessores – Jiang Zemin e Hu Jintiao – mantiveram o dispositivo constitucional adotado na era Deng, que limitava o tempo de permanência no poder do presidente a dois mandatos.

Não deixa de ser uma ironia que a reabilitação de Mao e a reintrodução do culto à personalidade tenham acontecido na presidência de um filho de uma das vítimas da Revolução Cultural. O pai de Xi Jinping, Xi Zhongxun, foi um dos heróis da Grande Marcha dos anos 30 e um dos fundadores da China Comunista. Crítico do “Grande Salto para a Frente” pagou caro por sua moderação, sendo preso e expurgado do Partido Comunista por diversas vezes, a última delas na Revolução Cultural.

A “Terceira Decisão Histórica” do PC chinês, tomada na semana passada pelo Comitê Central, equiparou Xi Jinping a Mao e Deng e abriu a possibilidade de ele conquistar um terceiro mandato. Com a alteração, Xi poderá ser presidente da China até o fim de sua vida – e ser um ditador perpétuo, como foram Stalin, Fidel e outros líderes do “socialismo real”.

O Partido Comunista da China recém completou cem anos e tem sua imagem fortalecida por ser visto pela maioria dos chineses como fator de unidade nacional e por, sob sua égide, ter retirado milhões de pessoas da miséria.

Xi Jinping é beneficiário direto desse progresso. Em seus anos de governo, emergiu na China uma grande classe média, e a economia do país, antes pautada na mão de obra barata para competir no mercado externo, se sofisticou. Hoje, direciona-se mais para o mercado interno e para a inovação tecnológica.

O culto à sua personalidade tem, portanto, uma base material, assim como o culto a Stalin tinha como base a transformação da Rússia atrasada e agrária em uma sociedade industrializada e uma potência mundial na Segunda Guerra.

Sim, a China se sofisticou, mas do ponto de vista ideológico a cabeça de Xi Jinping continua de granito. Para ele, a culpa da ruína da União Soviética está no processo de desestalinização patrocinado por Kruschev. E esse foi um dos motivos para o conflito sino-soviético dos anos 60. Diga-se de passagem, os comunistas chineses nunca engoliram as críticas a Stalin. Mao dizia que o ditador soviético tinha acertado em 70% e errado em 30%. Os acertos, assim, o absolviam de seus erros.

É com essa métrica que o terceiro timoneiro da China socialista vê o período de Mao Tsé Tung. Para Xi, criticar o Grande Salto para Frente, a Revolução Cultural e apontar os crimes de Mao é pôr em risco o monopólio do poder em mãos dos comunistas e o próprio regime.

Nos tempos do fundador da China comunista, o PC dizia que o pensamento de Mao Tsé Tung representava a terceira da etapa, colocando-o no patamar de Marx e Lenin. Agora, o Comitê Central do PC aprovou uma resolução na qual define o pensamento de Xi Jinping como o “marxismo do século 21”.

Esse marxismo combina o “socialismo de mercado” (sujeito a intempéries como quebra de empresas e inflação) com a ditadura do proletariado. O quanto esses dois fatores coexistirão em uma sociedade cada vez mais complexa é algo para a história esclarecer.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 17/11/2021. 

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