Governantes de índole totalitária não mentem de maneira desavisada ou inocente. Há sempre um objetivo por trás de suas falácias. Em 1933 o Reichtag (parlamento alemão) foi incendiado por um jovem holandês. Adolf Hitler acusou os comunistas, que nada tinham a ver com a história, e aproveitou o episódio para adquirir poderes absolutos. Um ano depois Josef Stalin usou o assassinato de Serguei Kirov, também um ato isolado, para dar início ao Grande Terror e à farsa dos processos de Moscou.
No Brasil, o exemplo mais clássico de uma mentira a serviço de uma virada totalitária aconteceu em 1937, por meio do chamado “Plano Cohen”. A pedido de Plínio Salgado, o então capitão Olímpio Mourão elaborou um falso plano de tomada do poder pelos comunistas. O objetivo inicial era achacar empresários paulistas acenando com o fantasma do comunismo. Mas quando chegou às mãos de Goés Monteiro, então chefe do Estado Maior do Exército, o general resolveu utilizá-lo para Getúlio Vargas instalar a ditadura do Estado Novo.
A escolha do nome do plano foi feita a dedo. Cohen era o sobrenome de um dirigente comunista e judeu húngaro, Bela Kun. A farsa explorava dois sentimentos: o antissemitismo e o anticomunismo. E amplificava os temores porque dois anos antes tinha acontecido o levante de 1935, liderado por Luiz Carlos Prestes.
Jair Bolsonaro retoma essa tradição: usa uma grande mentira a serviço de seu projeto de poder. Sem apresentar uma mísera prova, acusa a Justiça Eleitoral de estar a serviço da volta de Lula e do PT. Também sustenta com base em mentiras comprovadas que o sistema de voto eletrônico é passível de fraude. Leviano, diz que as eleições de 2014 e 2018 foram trapaceadas. Mais grave: ameaça promover uma ruptura democrática, ao dizer que ou as eleições de 2022 acontecerão como ele quer – com o voto impresso – ou não haverá eleições.
Há um método em sua escalada autoritária. A cada dia sobe mais um degrau em ameaças, em sintonia com a estratégia de emparedar as instituições da República e os outros dois poderes. Nesta terça-feira prometeu ir para a Avenida Paulista, para “dar o último recado”. Para bom entendedor, meia palavra basta. A partir daí está disposto a ir para as vias de fato.
Pode até ser mais uma de suas bravatas. Dizem que cão que ladra não morde. Mas nunca é bom subestimar esses rompantes. Ao tratá-los apenas como blefes não se leva em consideração o tamanho do perigo de um presidente da República fazer tais ameaças. É óbvio que representam afronta grave à democracia brasileira.
Eleger-se a qualquer custo e o medo de ficar de fora do segundo turno são a razão de sua radicalização. Tumultuar as eleições passa a ser a sua estratégia de continuísmo. No limite, criando uma situação em que não irá reconhecer o resultado das urnas e tentar impedir a posse do eleito. A mentira de que o voto eletrônico é fraudável é o seu Plano Cohen.
O presidente perde base social a olhos vistos. As manifestações do último domingo em favor do voto impresso estiveram longe de serem massivas. As ruas não estão dando aval a seus intentos golpistas – ao contrário. Mas seu isolamento político e social é também fator de risco. Quanto mais isolado, mais desesperado fica. Maior a possibilidade de tentar pôr fogo no país.
Nem mesmo a entrada do Centrão na alma do governo afasta o perigo. O bloco comete autoengano se pensa que Bolsonaro poderá atender a seus apelos de moderação. O núcleo de militares palacianos também pensava que domesticaria Bolsonaro. Aconteceu o contrário. Os militares do governo aderiram docilmente ao projeto de poder do presidente. O general Eduardo Ramos foi a mão que balançou o berço da live em que Bolsonaro despejou mentiras na última quinta-feira. E o general Braga Neto não esconde a que veio.
Seria um erro confundir os militares palacianos com as Forças Armadas. Nada autoriza concluir que elas embarcarão numa aventura golpista sem lastro na sociedade. Para 1964 acontecer havia uma forte base social favorável ao movimento dos militares, vide a Marcha da Família com Deus pela Liberdade. E a ameaça do comunismo já não tem o mesmo peso da época da guerra-fria; ao contrário, chega a ser risível de tão improvável.
Mas também não se deve subestimar a hipótese de milícias, grupos paramilitares e tropas de choque fanatizadas criar tumultos. A base de Bolsonaro, seu núcleo duro, é estimada em 15% da população adulta. É insuficiente para se ganhar uma eleição, mas nada desprezível para se criar confusão.
A resposta para este cenário está no comportamento firme e sereno das instituições. Ao Parlamento compete não se intimidar e tomar sua decisão soberana sobre o formato do voto. Idealmente, enterrando já na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara a aventura do voto impresso. E ao Poder Judiciário agir como faz agora o TSE, ao abrir investigação contra Bolsonaro para apurar seus crimes contra as eleições e o sistema eleitoral, respeitado e admirado internacionalmente.
O pior dos mundos é fingir que o Plano Cohen de Bolsonaro não existe e buscar um apaziguamento com um presidente de natureza totalitária.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 4/8/2021.