Do Tocantins aos sons dos tempos do onça

Para ouvir a valsa “Carrossel”, com André Kostelanetz e sua orquestra de concerto, girei várias vezes a manivela, movi o braço com a peça onde se encaixa a agulha e baixei-os sobre o disco que girava. Gesto comum nas primeiras décadas de 1900. Se não citei uma corneta, é porque meu gramofone não tem o dispositivo. É um modelo portátil.

Está comigo há 33 anos, desde o memorável dia em que o repórter-fotográfico Edward Costa foi a um churrasco em casa e chegou com um presente. Quase não acreditei quando vi o gramofone (um igual, que achei no Google, é de 1928).

O churrasco, de certa forma, comemorava a matéria que havíamos feito no futuro Estado de Tocantins. Mostrava como era aquele pedaço de Goiás, que em poucos meses teria vida própria.

Adiante, conto algumas passagens da viagem, em que cito Edward (como quando, numa emergência, serviu de cozinheiro de bordo numa barcaça de transportar boi, que alugamos para navegar pelo rio Tocantins).

O gramofone ficou exposto em um móvel da sala de casa. Em algumas ocasiões, púnhamos para funcionar, às vezes a pedido de visitas. Com o tempo, foi encarcerado em um armário – e ali ficou até que, por acaso, comentei sobre ele com Sérgio Vaz. E aqui está o texto encomendado.

Com o presente de Edward veio um álbum com dez discos. Que tal “Milonguita”, com Francisco Canaro e sua orquestra típica? No outro lado (uma música em cada face do disco), “Poema”?  Ou “Os milhões de Arlequim/ Frasquita”, com Nilo Ossani e orquestra? Um selinho indica que o disco foi comprado no Palácio da Música, Rua Direita, 60, fone 3-4092.

Tomei uma decisão: o gramofone não volta mais para o armário.

A seguir, trechos da matéria que fizemos em fevereiro de 1988 para o Jornal da Tarde, também publicada na Revista Afinal.

Assim que o taxi parou, vindo do aeroporto, Edward Costa, um tanto sonolento, pegou a maleta com o equipamento fotográfico, e espiou pela janela. Viu o hotel São Vicente, com o letreiro pintado na parede e seu ar de casa velha. Dois ou três hóspedes modorravam em cadeiras, na calçada. A rua estava deserta.

Edward despertou de todo.

– Queremos um hotel no centro da cidade – ralhou com o motorista.

– Aqui é o centro da cidade – respondeu o motorista.

Araguaína dormitava num sufocante fim de tarde de domingo, sem se importar em dar ares de candidata a capital do Estado do Tocantins. Mas a hospedagem foi possível.

Na manhã do dia seguinte, segunda-feira, uma cidade surpreendente e cheia de vida mostrou-se além da porta do hotel. Estávamos realmente no centro, e na principal avenida da cidade. (…)

Uma de suas lojas vendem botas de cano curto e sola de pneu. Edward, carregando a maleta com dez quilos de equipamentos, resolve comprar um par. Ele está usando tênis regata, sem meia. “Como vou experimentar a bota, sem meia?”, lamenta-se. “Eu empresto”, diz a mocinha vendedora. Com o pé da meia da casa, disponível para esse fim, Edward calça a bota no pé direito e a aprova. “Mas e o pé esquerdo?” A mocinha empresta o outro pé de meia. As botas custam 480 cruzeiros (R$ 67), mas, para não perder o hábito paulistano, Edward pechincha. Acaba pagando 450 cruzeiros (R$ 60).”

 

(No ônibus de Araguaína para Babaçulândia). Entram muitas mulheres com bebês. Um homem com uma espingarda. O ônibus lota. Sobe uma velha segurando pelos pés uma galinha viva. “Larga a galinha no chão” – impacienta-se Edward. A mulher obedece. A viagem segue. Os passageiros se conhecem, tratam o motorista por Pereira. Na amabilidade que se cria (e para amenizar o sufoco), Edward pergunta a uma menina de uns oito anos:

– O que você vai ser quando crescer?

– Freira.

 

(No hotel de Babaçulândia)  Em cidades remotas do Norte, quentes como Babaçulândia, os pequenos hotéis têm vitrôs em vez de janelas e os hóspedes passam muito calor. O Tocantins seria uma exceção? Edward abriu a porta do pequeno quarto e procurou a resposta. Além de aranhas, não encontrou nada nas paredes. Nem janela, nem vitrô.

No começo da madrugada uma chuva forte abateu-se sobre a cidade. Pelos vãos das telhas a vista, descia sobre os hóspedes, deitados em seus catres, um chuvisqueiro refrescante. “Melhor que ar condicionado”, tratava de consolar-se Edward, de dentro de seu pijama úmido.

 

(Navegando pelo Tocantins)  A embarcação típica do Tocantins, com seus oito metros de comprimento, leva gado, mercadoria e, quando calha, gente. Por três mil cruzados (R$ 400) subirá o rio com nossa reportagem, até Filadélfia, no futuro Estado de Tocantins. O preço inclui refeição a bordo, possível apenas porque um bom cozinheiro segue junto: Edward.

(…)  À margem (do rio) está uma casa branca, no meio de um aboboral. Abóbora para todos os lados. Ali mora um amigo do barqueiro.  Ele some-se por alguns minutos. No somenos, Edward subtrai uma pequena abóbora da plantação, que, afinal, estava ali à mão mesmo…

Outra coisa incomum, mas seguramente verdadeira, aconteceria pouco depois. Uma branquinha, um tipo de pescada de rio, pulou para dentro da barca. Edward não perdeu tempo: apanhou-a. Com o único instrumento cortante disponível a bordo – um facão de mateiro – limpou a branquinha e reservou.

Antonio (o barqueiro) trouxera dois pacus limpos, para o almoço. E, agora, havia a branquinha. Se o barqueiro pensou que trataria deles, perdeu seu tempo. À hora do almoço, o cozinheiro de bordo (Edward) examinou a mercadoria, e a considerou satisfatória.

– A frigideira – pediu para Antonio.

– Ih… m’squeci – respondeu ele, sem graça.

O fogão era um botijão de gás pequeno, com um suporte para panela, colocado no chão. O repórter fotográfico, cozinheiro diletante, descobriu a bordo uma bacia, que serviu como frigideira. Em pouco tempo o almoço está servido (um prato e dois garfos para os passageiros). Como fecho, Edward apresentou a abóbora, temperada com cebola e sal.”

 

(Filadélfia está na margem esquerda do Tocantins; na outra fica Carolina, Maranhão.) Levantamos muito cedo, para embarcar em um avião da FAB, em Carolina. Edward estava preocupado, pois no despacho das malas, em São Paulo, alguns rolos de filmes haviam sido furtados.

Chegamos à beira do Tocantins, cedo da madrugada. O céu clareando, os barcos que faziam a travessia mal exibindo suas silhuetas. Pouca luz. Edward resolveu não fotografar, precisava economizar filmes. Mesmo assim arriscou. Fez uma – apenas uma – foto, em cor. A foto foi capa da revista Afinal. O voo da FAB nos possibilitou chegar ao rio Araguaia, na divisa com Mato Grosso. Daí viajamos em boléia de caminhão, depois carro alugado, por várias cidades do ainda Goiás, até o dia em que chegamos a Porto Nacional, às margens do Tocantins.)

(Recordação) Às três e quinze, todas as tardes, um avião Bandeirantes de linha regional decola do modesto aeroporto de Porto Nacional para Brasília. Serão duas horas de viagem, com escala em Gurupi. Com vinte minutos de voo, depois dessa escala, a garrafa térmica de café é apanhada, com licença do comandante, de um pequeno armário. E o “comissário” Edward põe-se a servir o cafezinho aos passageiros.)

Março de 2021

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