O elogio à ditadura

“A China é capaz de lutar contra o coronavírus tão rapidamente porque tem um partido político forte e um governo forte. Porque o governo tem controle e poder de comando. O Brasil não tem isso, nem outros países.”

A declaração – uma indiscutível, indisfarçável, entusiástica defesa da ditadura como um regime melhor do que a democracia – é de Luiz Inácio Lula da Silva. Foi feita em entrevista ao jornal chinês Guancha, na última semana de junho.

Em 2002, após perder três eleições seguidas à Presidência da República, convencido de que precisava enganar os eleitores para poder ter chances de vitória e travestido pela marquetagem em Lulinha Paz e Amor, ele abandonou o tipo sapo-barbudo e lançou charme com sua “Carta aos Brasileiros”, em que tentava dizer que não era anti-mercado, anti-capital. Que não era radical, comunista, de jeito nenhum.

Agora, numa fase áurea, favorecido pelos ventos lenientes com a corrupção que sopram firmes na Brasília onde pontificam Jair Bolsonaro, Ricardo Aras, Arthur Lira, Ricardo Barros, Gilmar Mendes e seu velho amigo Ricardo Lewandowski, com 49% das intenções de voto segundo pesquisa recente do Ipec, Lula se permitiu a frase que é uma ode à ditadura, uma canção fúnebre da democracia, essa coisa frágil que não dá aos governos controle, poder de comando.

Mas engana-se profundamente quem enxergar no elogio babante ao regime político da República Popular da China proferido pelo camarada Lula algo parecido com a ideologia comunista.

Até porque não existe mais no mundo comunismo – a não ser na fantasia tresloucada de Bolsonaro e seus seguidores do gênero vacum, a mesma que consegue enxergar a Terra plana.

Não há nada, ou quase nada, menos comunista do que a China, país do capitalismo mais selvagem que pode existir, a ponto de conviver sem contestação com trabalho infantil e trabalho escravo.

Se alguma coisa menos comunista que a China, em todo o universo, essa coisa se chama Luiz Inácio Lula da Silva.

Lula jamais escondeu que prefere ternos bem cortados, de grife, a uniforme de operário. Ele disse isso, com todas as letras. Da mesma maneira com que disse que o apartamento triplex de frente para a bela praia de Astúrias, no Guarujá – que lhe foi oferecido, reformado, como mimo da construtora OAS, em agradecimento por serviços prestados – não era lá essas coisas; ao contrário, era mixuruca, parecia com coisa do Nossa Casa, Nossa Vida.

Lula gosta mesmo é dos prazeres burgueses, como o vinho Romanée-Conti.

Nada contra os prazeres burgueses, não, tá? Nada contra. Só estou lembrando aqui que de comunista Lula não tem nada, nadica, neca de pitibiribas. Basta lembrar que, em oito anos de Presidência, teve o apoio firme e forte (e bem pago) do Centrão.

A admiração que ele demonstra pela República Popular da China não tem nada a ver com comunismo – até porque é sempre bom repetir que de comunista a China só tem o nome do partido agora centenário.

Lula admira a China porque admira as ditaduras – como a dos irmãos Castro e a de Chávez-Maduro..

Lula admira partido político forte, governo forte. Governo que não admite contestação, imprensa livre. Partido político, se não der para ser único, então que seja o que manda – como o PT vem mandando em seus satélites desde que foi fundado.

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O elogio descarado de Lula à ditadura chinesa, que evidencia seu desprezo pela democracia, praticamente passou batido. Pouca gente falou dele – uma das exceções foi o belo artigo que Elio Gaspari publicou em O Globo e na Folha de S. Paulo da última quarta-feira, dia 30/6, e transcrevo logo abaixo.

Claro, é preciso admitir que foi uma semana absolutamente cheia de notícias importantes, em especial com os avanços da CPI da Covid e as revelações sobre o gigantesco esquema de corrupção no Ministério da Saúde do desgoverno do Capitão das Trevas.

Mas não dá para passar batido.

Não há como combater o capitãozinho insubordinado e terrorista, adorador da ditadura militar e da tortura, e deixar barato o elogio de Lula à ditadura chinesa.

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Ele e o exemplo chinês

Uma boa ditadura resolve qualquer problema

Por Elio Gaspari, O Globo e Folha de S. Paulo, 30/6/2021

Ele examinou a situação e ensinou:

— A China é capaz de lutar contra o coronavírus tão rapidamente porque tem um partido político forte e um governo forte. Porque o governo tem controle e poder de comando. O Brasil não tem isso, nem outros países.

Bolsonaro? Não, Lula, o candidato mais bem colocado nas pesquisas para a eleição presidencial do ano que vem.

O fascínio de Lula pela ditadura chinesa é antigo. Em 2003, quando era presidente, disse que “a China acordou, e o mundo está, pelo menos, preocupado com o potencial de crescimento da China. Antes de Napoleão Bonaparte ter visitado a China, o hino brasileiro já falava que nós somos um gigante”. (Napoleão nunca foi à China.)

Falar em “partido político forte” e “governo forte” com “poder de comando” é maquiar a ditadura do centenário Partido Comunista da China (PCC). Lastimar que o Brasil não tenha esses instrumentos é um menoscabo às instituições brasileiras.

Partido e governos fortes são coisa que a China tem desde 1949, quando o Grande Timoneiro Mao Tsé-Tung foi para o poder. Lá, o presidente Liu Shaoqi saiu da linha, e Mao mandou-o para a cadeia, onde morreria em 1969, em condições deploráveis, com apenas sete dentes. Sua mulher foi escrachada e ficou encarcerada por mais de dez anos. Esse Império do Meio de partido e governos fortes poderia ser chamado de China 1.0. Nela, o país passou por uma grande fome com episódios de antropofagia e pelo menos 15 milhões de mortos.

Na China 2.0, Liu foi reabilitado. Sua filha formou-se pela Universidade Harvard, fundou uma consultoria e nela administrou parte da fortuna da família Rockefeller. Essa China 2.0 foi fundada por Deng Xiaoping. Tornou-se um memorável modelo de progresso com ditadura. É dessa China que Lula fala, mas nela o poder do partido não existiria sem as bases deixadas por Mao.

Em 1974, quando Deng foi aos Estados Unidos, teve de recorrer a um amigo para comprar US$ 35 de brinquedos para os netos. Vinte anos depois, quando a China bombava, sua mulher tentou se matar porque o filho do casal havia sido denunciado por ladroeiras.

Foi Deng, com seu jeitão de vovô austero, que dizia precisar só de cigarros e de um pote para cuspir, que ordenou a repressão aos manifestantes da Praça Tiananmen, em 1989. O segundo homem da hierarquia chinesa era o secretário-geral do PCC, Zhao Ziyang. Teve melhor sorte que Liu Shaoqi. Ficou em prisão domiciliar até morrer, em 2005.

Lá também existe uma Corte Suprema, mas, com partido e governo fortes, foram para a cadeia milhares de burocratas ladrões, inclusive os equivalentes ao presidente da Petrobras e ao chefe da Polícia Federal. Não há notícia de administrador encarcerado e reabilitado.

Por ter um partido e um governo fortes, a China pode ter controlado a pandemia com menos mortos que a democracia dos Estados Unidos com o tatarana Donald Trump na Casa Branca. Contudo Lula não deveria ter exagerado no exemplo.

O médico Li Wenliang alertou sobre o vírus no dia 30 de dezembro de 2019. Três dias depois, foi obrigado a assinar um documento confessando que teve um “comportamento ilegal”. Àquela altura, 425 pessoas haviam morrido e 20 mil estavam contaminadas pelo mundo afora. Inclusive ele, que viria a morrer em fevereiro.

30/6 e 2/7/2021

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