A Justiça não inocentou Lula

Lula não foi inocentado.

Essa é uma verdade clara, límpida, evidente, óbvia. A rigor, é um truísmo – “verdade trivial tão evidente que não é necessário ser enunciada”, segundo detalha o Dicionário Unesp de Português Contemporâneo.

Mas os tempos em que vivemos andam tão bicudos, a verdade dos fatos é tão atacada diariamente pelo energúmeno que ocupa a Presidência da República e seus asseclas, fala-se que a Terra é plana, ou até mesmo que máscaras não são necessárias para prevenir o contágio da pandemia, que é preciso enunciar truísmos com todas as letras.

Lula não foi inocentado.

Não houve uma única sentença judicial inocentando Lula dos crimes de que é acusado.

Muito ao contrário. Muitíssimo ao contrário. As condenações de Lula na Justiça Federal de Curitiba foram mantidas em segunda e em terceira instâncias – no Tribunal Federal da 4ª Região, em Porto Alegre, e no Superior Tribunal de Justiça em Brasília

Dez juízes condenaram Lula – e nenhum, nem um único juiz o inocentou.

Nestes tempos em que a verdade é tão aviltada, não custa repetir as verdades – sequer os truísmos. Ao contrário: é até um dever.

Nenhum juiz inocentou Luiz Inácio Lula da Silva pelos crimes de que é acusado. Nem um único juiz.

E é necessário lembrar sempre que, entre os 11 ministros do Supremo Tribunal Federal que esta semana votaram sobre as suspeitas de parcialidade do ex-juiz Sérgio Moro, quatro deles não seguiram os votos dos outros sete.

Quatro de 11 ministros não consideraram o ex-juiz suspeito.

Como Carlos Alberto Sardenberg escreveu no Globo deste sábado, 26/6, sobre as votações no STF sobre o assunto:

“Em nenhum momento se discutiu se Lula era culpado ou inocente. As decisões de Moro, confirmadas em duas instâncias superiores, diziam: o triplex foi doado a Lula e reformado pela OAS sob orientação do ex-presidente e sua mulher, dona Marisa; a Odebrecht reformou o sítio de Atibaia, em presente para o ex-presidente; a Odebrecht comprou um terreno para ser a sede do Instituto Lula.

“Tudo isso baseado em provas materiais abundantes e delações de executivos de empreiteiras envolvidas. (…)

“Reparem: Lula não foi inocentado. Denúncias e processos, em tese, recomeçam, mas obviamente prescreverão sem julgamento.”

Ou como disse o jornalista José Nêumanne Pinto na Rádio Eldorado na sexta-feira, 25/6:

“O ministro do STF Gilmar Mendes estendeu os efeitos da declaração de suspeição do ex-juiz Sérgio Moro a processos da Lava Jato contra o ex-presidente Lula do sítio de Atibaia e da doação do terreno para sediar o Instituto Lula. A decisão individual foi tomada um dia após o plenário da Corte considerar o ex-ministro da Justiça parcial por condenar o petista à prisão por 580 dias e o deixou de fora das eleições de 2018. Mas Moro é herói nacional, segundo outro ministro do STF, Marco Aurélio de Mello. Essas decisões da cúpula do Poder Judiciário são absurdas por favorecerem um dos patronos das nomeações de seus ministros anulando cinco anos de decisões majoritárias das outras instâncias, desmoralizando a justiça como instituição e a política como dever de ofício. Como vpvó dizia, no Brasil a cada dia sua agonia.”

José Nêumanne Pinto é o autor de uma alentada obra sobre Luiz Inácio Lula da Silva, O Que Sei de Lula (Topbooks Editora, 2011), resultado de longa convivência com o ex-presidente, desde os tempos de sindicalista no ABC paulista nos anos finais da ditadura militar. Paraibano firme em suas convicções, sem papas na língua (sei disso porque já tomamos cerveja juntos algumas dezenas de vezes com ele), Nêumanne sugeriu num vídeo na mesma sexta-feira que o ministro Gilmar Mendes ganhou o direito de ”homenagear o réu” alterando seu nome para Gilmar Lula da Silva Mendes.

Concordo plenamente com Nêumanne neste ponto. Outro dia cometi uma frase quase tão forte quanto as do meu amigo paraibano: “Quem nasce para Gilmar Mendes nunca chega aos chinelos de Sérgio Moro.”

Assim como concordo com tudo o que Carlos Alberto Sardenberg afirma em seu artigo, que transcrevo aqui.

***

Vai liberar geral

Por Carlos Alberto Sardenberg, O Globo, 26/6/2021

‘Sessão de psicanálise, você diz: sonhei com Fulano/a, e não foi um sonho erótico.

Danou-se. O/a analista já sabe: foi erótico.

É clássico.

Vários ministros do STF que votaram pela anulação das condenações de Lula imediatamente acrescentaram: atenção, não vale para os demais casos.

Ou seja, vale.’

Comecei assim a coluna de 17 de abril passado. Naquele momento, o caso de Lula estava no seguinte ponto: o ministro Fachin, relator, havia decidido que o foro adequado para o julgamento de todos os casos de Lula era Brasília, e não Curitiba, sede da Lava-Jato. Assim, os processos estavam cancelados e deveriam recomeçar da estaca zero.

Queria evitar, com essa manobra, que a Segunda Turma do STF julgasse a suspeição de Sergio Moro no caso do triplex do Guarujá.

Não funcionou. A Segunda Turma seguiu esse julgamento e, por 3 a 2, numa votação liderada por Gilmar Mendes, considerou Moro suspeito e anulou a condenação no caso do apartamento do Guarujá.

De novo, vieram com a lorota de que só valia para aquele caso. Mas o caso foi ao plenário do STF — e este decidiu, por 7 votos a 4, manter a decisão da Segunda Turma: que Moro havia sido parcial na condenação de Lula no caso do triplex. Só se tratou desse caso.

Pois, no dia seguinte, o ministro Gilmar Mendes já tinha pronta uma decisão declarando Moro suspeito e parcial em todos os casos envolvendo Lula — o triplex, o sítio de Atibaia, o terreno para o Instituto Lula e o apartamento de São Bernardo.

O que há de comum em todos esses passos? Simples: em nenhum momento se discutiu se Lula era culpado ou inocente. As decisões de Moro, confirmadas em duas instâncias superiores, diziam: o triplex foi doado a Lula e reformado pela OAS sob orientação do ex-presidente e sua mulher, dona Marisa; a Odebrecht reformou o sítio de Atibaia, em presente para o ex-presidente; a Odebrecht comprou um terreno para ser a sede do Instituto Lula.

Tudo isso baseado em provas materiais abundantes e delações de executivos de empreiteiras envolvidas.

Foi assim mesmo ou é tudo mentira? A resposta do STF é mais ou menos assim: isso não é com a gente; o que sabemos é que Moro não devia ser o juiz, e o foro não deveria ser Curitiba; logo, volta tudo para o ponto de partida.

Reparem: Lula não foi inocentado. Denúncias e processos, em tese, recomeçam, mas obviamente prescreverão sem julgamento.

Fica só no ex-presidente?

É claro que não. Todos os demais condenados pela Lava-Jato, em casos de algum modo conexos aos de Lula, e praticamente todos são, poderão requerer os mesmos benefícios. Seria Moro um juiz parcial — como decidiu o STF — apenas com Lula? Por que não teria sido igualmente parcial com Eduardo Cunha ou Marcelo Odebrecht?

Vamos falar francamente: não se trata apenas de Lula, nem da Lava-Jato. O movimento em questão, com a liderança de Gilmar Mendes, tem o claro objetivo de desmontar todo o sistema de combate à corrupção.

Interessante que o presidente Bolsonaro, eleito brandindo a bandeira da Lava-Jato, está também empenhado em controlar e fragilizar os órgãos de combate à corrupção, como o Ministério Público, a Polícia Federal e o Coaf.

Isso ocorre porque o combate à corrupção foi longe demais, no bom sentido. Começou a apanhar os intocáveis, os donos das fazendas, como diria Roberto DaMatta. Ou, como já se disse, numa ótima definição: “Na verdade, o que se instalou no país nesses últimos anos, e está sendo revelado na Lava-Jato, é um modelo de governança corrupta. Algo que merece o nome, claro, de cleptocracia”.

Autoria de Gilmar Mendes, lá atrás. “Onde foi parar esse juiz?”, perguntou DaMatta em coluna neste jornal. Acrescento: e por que foi parar onde parou?

Fatos novos, certamente. Mas tão graves assim a ponto de levar ao desmonte de todo o sistema anticorrupção, numa clara combinação entre Judiciário e Congresso?

26/6/2021

 

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