Foi por puro acaso que aconteceu de eu ver toda a apresentação das oito finalistas de skate na Olimpíada de Tóquio, nesta segunda-feira, 26 de julho. Foi também por puro, absoluto acaso – o iPod fica sempre no modo shuffle, randômico – que, umas poucas horas depois de ter ficado conhecendo esse encanto, essa coisa linda que é a garotinha Layssa Leal, ouvi a canção do Secos & Molhados que admiro desde muito antes de Layssa nascer, mas fazia anos que não ouvia.
A jovem Layssa e a antiga “Preto Velho” se juntaram para me fazer pensar no passado presente futuro – que aliás é o nome de uma beleza de disco do Sá, Rodrix e Guarabyra, Passado, Presente, Futuro, mas esse disco não tem nada a ver com o que pensei em dizer neste suelto.
A alegria, a espontaneidade, a vivacidade, a carinha linda da garota maranhense de Imperatriz, de 13 anos de idade, que viria a se tornar a mais jovem medalhista olímpica do Brasil, uma das três mais jovens de toda a História, e muito provavelmente também o fato de que eu estava vendo aquilo junto de Marina, apenas cinco anos mais nova, mexeu comigo.
“João, o tempo andou mexendo com a gente, sim”, cantava, numa canção danada de bela, o Belchior.
Uns 80 quilômetros e umas 17 horas depois de ter visto Rayssa no sítio em que passamos uma semaninha juntos com Marina (e dois dias também com a Mamãe e o Papai dela), escrevi no Facebook sobre a mexeção que aquilo havia me feito:
Essa menina Rayssa tem a cara de um Brasil que às vezes a gente acha que acabou para todo o sempre – o Brasil bom, alegre, esperançoso, vibrante.
Ver essa menina me fez lembrar dos tempos antes da Quarta-Feira de Cinzas que desabou sobre o país em 1964 – a época em que tudo era novo, Nova Cap, bossa nova, cinema novo, e parecia que tudo ia dar certo.
Esqueci de mencionar que era o tempo em que o Brasil pela primeira vez vencia a Copa do Mundo de futebol. Meu amigo Melchíades Cunha Júnior me lembrou disso em um comentário.
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Da mesma forma com que Rayssa me fez ter esperança no país, a esperança de que afinal de contas o país do futuro ainda não tenha se perdido completamente no pântano da Idade Média, da Idade das Pedras a que nos querem conduzir o presidente das República e seus acólitos, a canção dos Secos & Molhados me fez pensar que, diabo, talvez não estejamos fatalmente considerados a ser uma raça que se divide em hostes guerreiras por causa da porra da cor da pele.
Sempre adorei “Preto Velho”. Tinha 24 anos quando o segundo e último disco dos Secos & Molhados foi lançado, mas já pensava exatamente o que penso hoje: cor da pele não importa, não tem qualquer importância – ou não deveria ter, se fôssemos uma raça um pouquinho mais dotada de inteligência e bom senso, e não esta raça sempre propensa a uma luta fratricida idiota.
Aquele preto tão preto
Com aquela barba branca tão preta
E aquele olhar tão meigo
De quem espera ganhar
Um sorriso incolor.
Fui checar. Peguei o disco. É João Ricardo puro, letra e música – e o vocal não é apenas de Ney Matogrosso, como boa parte das canções da banda, mas dos três, Ney, João Ricardo e Gerson Conrad. Dá até vontade de me alongar sobre os Secos & Molhados, o primeiro grupo pop brasileiro a estourar, a encher o Maracanãzinho, o grupo cujo visual influenciou o Kiss inglês, e morreu no auge, logo após o lançamento desse segundo álbum, vítima de problemas não resolvidos entre os três membros, em especial o dono da idéia e das composições e o dono da melhor voz e da performance teatral fantástica.
Mas isto aqui é um suelto, não um texto sobre música, e então vou logo dizendo que se passaram duas décadas para surgir uma canção que dissesse exatamente o que “Preto Velho” quer dizer. E, de novo, foi obra de um paulista. Em 1995, André Abujamra lançou “A alma não tem cor”.
João Ricardo foi minimalista: matou a cobra do racismo e mostrou pau em quatro versos. André Abujamra foi mais prolixo, mas é tudo uma maravilha:
Alma não tem cor
Porque eu sou branco
Alma não tem cor
Porque eu sou negro
Alma não tem cor
Porque eu sou branco
Alma não tem cor
Porque eu sou negro
Branquinho neguinho
Branco negão
Alma não tem cor
Porque eu sou branco
Alma não tem cor
Porque eu sou nego
Alma não tem cor
Porque eu sou branco
Alma não tem cor
Porque eu sou Jorge Mautner
Percebam que a alma não tem cor
Branco negão
Ela é colorida, ela é multicolor
Branco negão
Azul amarelo
Verde verdinho marrom
Você conhece tudo, né?
Você conhece o reagge, né?
Você conhece tudo, né?
Você só não se conhece
***
“It’s not always gonna be this grey”, dizia George Harrison.
O Brasil que parecia que daria certo. A utopia do pós-racismo.
É bom ter esperança.
É bom a gente não acreditar que tudo tudo não vai dar pé, neste momento em que estamos enfiados no fundo do fundo do fundo do pântano.
Obrigado, Rayssa. Obrigado, João Ricardo e André Abujamra.
26 e 27/7/2021
Aqui, o sensacional clipe de “A alma não tem cor”.
E, aqui, o som de “Preto Velho”. Não fizeram clipe…