Professora, tradutora, Maria Helena era uma mulher culta. Culta, educada, cultivada. Tinha um conhecimento enciclopédico, uma cultura geral admirável, um conhecimento de literatura de deixar a gente com inveja. E sabia escrever. Tinha esse dom.
Muita gente acha que escrever bem é fazer texto empertigado, vestido a rigor para festa noturna chique. Não poderia haver engano maior: texto bom é texto simples, fluente, solto, à vontade, como quem conversa com um amigo querido. Não, também não é uma coisa tipo chinelo de dedo e camiseta regata, uma coisa assim esculhambada. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra, como diria minha mãe (que aliás não escrevia mal), como certamente diria a própria Maria Helena.
Nem oito, nem oitenta. No meio, no centro, que é onde reside o bom senso.
O texto de Maria Helena era como o bom senso – nem empertigado, enfatiotado, nem largadão, esculhambado. Texto simples, fluente, solto, à vontade, como quem conversa com um amigo querido.
Ricardo Noblat, um dos mais sólidos jornalistas deste país (e faz tempo isso), escreveu nesta sexta-feira, 8/10, o dia em que perdemos Maria Helena:
“Eu brincava com Maria Helena dizendo: ‘Quando crescer eu quero escrever tão bem quanto você’. Não era só brincadeira, mas um bocado de inveja. Ela tinha o dom de escrever tocando na alma das pessoas e sem jamais ser piegas. Dominava o português e outros idiomas como poucos e era extremamente culta.”
Foi Noblat que levou Maria Helena Rubinato Rodrigues de Sousa para perto do jornalismo e acabou fazendo com que ela, depois de velha, virasse também, além de professora e tradutora, uma articulista. Por 17 anos Maria Helena foi colaboradora do Blog do Noblat, o mais antigo blog sobre política da imprensa brasileira; o Blog do Noblat mudou de casa várias vezes – esteve ligado a O Estado de S. Paulo, a O Globo, à revista Veja, agora está no portal Metrópoles –, mas Maria Helena sempre continuou por lá.
Por generosidade dela (e também dele, o dono do blog), seus artigos lúcidos, inteligentes, às vezes bem humorados, às vezes, ao contrário, furibundos com as mazelas deste país, mas sempre, sempre bem escritos. Bom texto, esse dom – essa talento que pode até ser trabalhado, lapidado, como um ourives faz com uma pedra bruta, mas que não se cria, não se transfere.
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Como aconteceu com um bom número de amigos que fizemos nas últimas décadas, Maria Helena entrou na nossa vida via internet, e só muito tempo depois viríamos a nos ver ao vivo e em cores. Ela e Mary começaram a conversar por mensagem nas noites de sexta-feira, que era quando Mary enviava seu artigo semanal para sair no domingo no Blog do Noblat. Maria Helena comentava os textos da Mary, que também comentava os dela – e daí a pouco eram duas comadres que se conheciam desde sempre.
Ela sem dúvida tinha essa capacidade fantástica de se tonar amiga de infância das pessoas que acabava de conhecer e que, por algum motivo, a cativavam. Foi assim por exemplo como minha amiga Marli Gonçalves – viraram amigas de infância, comadres, da mesma maneira que foi com Mary. Da mesma maneira que foi com Vera Vaia.
Conta a Vera:
“Quando meus textos começaram a ser publicados no 50anosdetextos, ganhei um fã de peso que me honrava com sua leitura e com seus comentários. A partir daí, nasceu uma amizade virtual entre nós, que acabaria numa amizade em ‘carne e osso’ se não tivesse começado uma pandemia no país. Maria Helena tinha prometido uma visita quando passasse por Jundiai, onde moro, a caminho de Valinhos, onde visitaria parentes. Infelizmente, hoje Maria Helena Rubinato pegou o Trem das Onze e foi ao encontro do seu pai Adoniran, levando seus textos impecáveis e certeiros. 🖤”
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Quando Mary e eu nos encontramos “em carne e osso” pela primeira vez, foi de fato como se nos conhecêssemos havia anos. Foi aqui em São Paulo, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, no lançamento de um belíssimo livro sobre Adoniran Barbosa – não me lembro em que ano foi, nem o nome do livro, diabo. Lembro que nos grudamos e não nos soltamos mais, por horas e horas. Anos depois, numa ida nossa ao Rio, marcamos um jantar, onde conhecemos o Alfredinho, o filho adorado dela, uma figura de uma simpatia imensa, uma coisa absolutamente doce.
Falamos de absolutamente tudo e muito.
Às vezes me ocorre que tínhamos algumas coisas em comum, Maria Helena e eu – além da ojeriza pelos dois políticos populistas e desgraçadamente incompetentes como administradores que dominam a política brasileira nos últimos anos. Nós dois temos filho/filha única/único – tivemos a sorte, o hazard, de qualquer forma a bênção de concentrarmos todo o nosso amor, toda a nossa babação de pais/mães por um único ser. Nesse item especificamente, minha filha é como nós, mãe de filha única. E é uma delícia como Maria Helena passou a curtir Marina como se fosse um sobrinha-neta dela; não havia uma mensagem dela pra mim que não terminasse com “beijocas para Marina”.
Ela era assim mesmo, coração imenso, mamma de todos os que chegavam perto. Ricardo Noblat escreveu que ela chamava os netos dele de seus bisnetos.
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Maria Helena foi a única filha de João Rubinato, o filho de imigrantes italianos que se tornou conhecido como Adoniran Barbosa. Adoniran casou-se em dezembro de 1936 com Olga Krum, e Olga lhe deu Maria Helena em 23 de setembro de 1937. O casal se separou em um desquite em 1943; Adoniran viveria depois, até a morte, com Matilde de Lutiis – mas o casal não teve filhos.
O fato de a única herdeira do compositor de tantos e tantos e tantos sucessos, que tocaram zilhões de vezes no rádio, e continuam a tocar, receber uma miséria de direitos autorais é absolutamente chocante. É um escândalo, um crime. Numa ocasião, Maria Helena chegou a desabafar conosco sobre isso, perguntou se a gente achava se haveria algo a fazer contra esse absurdo.
Mas é interessante: das poucas vezes em que ela falou a respeito do pai (ela foi criada por parentes, motivo dos seus dois últimos sobrenomes) com a gente, falou bem mais de sua indignação por Adoniran não ter tanta reverência quanto deveria no Brasil (em Israel há um museu com os objetos que ele contruía) do que reclamava da ridícula miudeza dos direitos autorais de “Trem das Onze”, “Samba do Arnesto”, “Saudosa Maloca” e mais algumas dezenas de canções memoráveis, maravilhosas.
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Creio que nunca cheguei a comentar com Maria Helena, mas acho muito interessante o fato de que o pai dela se parecia demais, fisicamente, com o pai da Suely, o avô materno da minha filha. O velho Antenor era exatamente como Adoniran – além de ser, como ele, filho de imigrantes italianos que se radicaram no interior de São Paulo nas primeiras décadas do século passado. Magrelo, bem magrelo, e feio quase que nem a fome. Até a voz rouca, roufenha, resultado de muita cachaça e muito cigarro, era parecida. Quando Seu Antenor vinha nos visitar, eu gostava de botar pra ele ouvir os discos de Adoniran, os dois primeiros, de 1971 e 1972, produzidos pelo Pelão.
Quem diria. Quando Maria Helena mandava beijocas para Marina, havia uma longa história por trás…
Que os anjos te recebam bem, Maria Helena.
8/10/2021
Que pena , Sergio Vaz
Nossa !!!!
Minha memória voltou atrás muitos anos .
Eu era assídua no Blog do Noblat .
Fiz amigos por lá , amigos que cultivo até hoje , alguns já se foram . Acompanhei o nascimento da Sofia , os anos de lula e dilma , todas as nossas lutas que nunca acabam , porque somos apaixonados pelo Brasil .
Acompanhei a Maria Helena , muito !
Quem acompanhava o Noblat , recebia como prêmio , a Maria Helena , a Mary , o Sandro Vaia , outro que deixou saudades .
Aquele blog era movimentado .
Tínhamos muitas ideologias debatendo sobre política .
A Maria Helena sempre trouxe excelentes contribuições . Alguns amigos , por vezes , discordavam dela , mas , mesmo na discordância , o que ela escrevia , era impecável , nítido e claro , traduzindo o pensamento dela sobre o assunto .
Espero que o filho único dela esteja em paz com a passagem dela . Eles eram muito dependentes um do outro , na época que eu acompanhava o Blog .
Bela homenagem que você presta à Maria Helena . Meus sinceros sentimentos e meu carinho a você e à Mary , pela perda da amiga . Que ela descanse em paz .
Como eu me encanto com um bom texto
Sinto inveja ( inveja do bem – existe isso ?) .
Gostei de conhecer sua história com Maria Helena.
Sobre Adoniran, vi um vídeo do museu dele em Israel e um coral de um “kibutz” cantando ” Trem das Onze”. Sensacional !
Brilhante e delicioso texto amigo. Um grande abraço.