Eram 18 horas de 23 de março de 1971 quando Márcio Leite de Toledo se aproximou da Rua Itaipava, no bairro da Bela Vista em São Paulo. Estava acompanhado dos membros do comando nacional da Aliança Libertadora Nacional. Levava em uma das mãos uma capa de chuva e no bolso sua carta de desligamento da ALN, com a qual tinha entrado em divergência política ao propor o recuo das ações armadas que a organização vinha realizando desde 1968.
De um Fusca estacionado descem dois homens. Em seguida disparam oito tiros, matando Márcio imediatamente. Não eram agentes da repressão que tinham estourado um ponto, como era comum naquela época. Eram executores – um deles, Carlos Eugênio Sarmento Paz, último comandante da ALN – da sentença de morte de Márcio pelo “tribunal revolucionário” da Aliança Libertadora Nacional.
A sentença foi dada em rito sumário, numa reunião em um Fusca, sob o pretexto de que Márcio representava risco para a segurança da organização, por deter informações sobre o seu funcionamento. É um caso raro de alguém “justiçado” por um ato que não cometeu, mas poderia vir a cometer, na suposição de seus algozes.
O assassinato de Márcio de Toledo, tendo como sicários antigos companheiros, junta-se ao “justiçamento” de mais outros três militantes da esquerda armada, dos duros anos de chumbo, no período da ditadura militar. Como ele, Carlos Alberto Maciel Cardoso, Francisco Jacques de Alvarenga e Salatiel Teixeira Rolim foram assassinados por decisão de “tribunais revolucionários”. Três da ALN e um do PCBR. Em comum, a acusação de traição, das quais todos os quatro eram inocentes, e não tiveram o menor direito de defesa.
A história desses quatro esqueletos, que os remanescentes da esquerda armada fazem questão que continuem no armário, adquiriu visibilidade graças ao intenso trabalho de investigação do jornalista Lucas Ferraz, autor do livro Injustiçados. Ele chega às livrarias no momento em que as telas do cinema exibem o filme Marighella, principal nome da guerrilha urbana dos anos 60/70, assassinado pela ditadura em 1969. O filme traz a narrativa de que essa esquerda foi heróica, um justificável braço armado para a resistência democrática.
Trata-se de uma apropriação da História, um embuste, segundo o historiador Daniel Aarão Reis. Em parceria com Jair Ferreira de Sá, e após estudar documentos da esquerda daquela época, o historiador demonstrou que as organizações que defendiam a luta armada não lutavam por estabelecer um governo democrático no país. Lutavam para instalar um “governo popular revolucionário” ou “governo dos trabalhadores” e outras variáveis da “ditadura do proletariado”. O modelo era a Cuba de Fidel Castro, que exerceu forte influência na esquerda brasileira, ou a China de Mao Tsé-Tung.
No caso do assassinato dos quatro injustiçados, chama a atenção o subjetivismo nas sentenças dos tribunais revolucionários, tomadas sem qualquer prova objetiva. Salatiel Rolim foi condenado à morte porque teria sido o responsável pela prisão de Mário Alves, principal dirigente e fundador do PCBR, brutalmente torturado e assassinado pela ditadura militar. Seus algozes ignoraram o fato de que Salatiel denunciou na Justiça Militar o assassinato de Mário Alves. Outros dois fundadores do PCBR, Jacob Gorender e Apolônio de Carvalho atestaram, posteriormente, sua inocência.
Já o professor Jacques de Alvarenga, assassinado quando preparava uma aula em sala de um cursinho no Rio de Janeiro, foi “justiçado” porque, sob forte tortura, forneceu informação que levou à prisão e morte de outro militante da ALN. Invertem-se aí as responsabilidades: o responsável por essa morte não foram seus torturadores, mas outro militante também torturado! Se essa regra da ALN estivesse em vigência quando do assassinato de Carlos Marighella, os frades dominicanos teriam sido “justiçados” porque sob intensa tortura forneceram informações que levaram ao líder guerrilheiro.
Acuadas e praticamente dizimadas, essas organizações passaram a viver em um mundo paralelo, inteiramente desconectado da realidade, imaginando que o Brasil vivia uma guerra revolucionária. Ora, como se achavam em guerra, não admitiam recuos, como deixa claro o comunicado da ALN sobre o assassinato de Márcio de Toledo. Esqueciam que, mesmo na guerra, há regras a serem seguidas e, ao não obedecê-las, findavam por legitimar a teoria da “guerra assimétrica” com a qual a ditadura militar justificava a tortura, as mortes e desaparecimento de adversários do regime.
Ironia da história: aos tempos em que “justiçou” inocentes tirando suas vidas ficaram ilesos os verdadeiros “cachorros” – como eram tratados pelos militares os militantes de esquerda que passaram para o lado da repressão -, recebendo remuneração pelas informações prestadas. A ”Justiça Revolucionária” não chegou ao cabo Anselmo, só para citar o mais célebre dos “cachorros”.
Não há atenuantes para os quatros assassinatos revelado pelo livro de Lucas Ferraz. Mas eles também não podem ser usados para absolver a ditadura pelas 434 mortes e desaparecimento de oposicionistas. Não se pode sequer colocá-los com peso igual na balança da História. Até porque ao Estado não é dado o direito da tortura e do assassinato.
Fazem-se necessárias ainda duas outras ressalvas.
Nem toda a esquerda trilhou o caminho da guerrilha. Parte dela participou, desde o início, da frente democrática expressa no MDB e depois no PMDB, tendo contribuído, em aliança com os democratas e liberais, para a superação da ditadura militar por meio da campanha das diretas e da eleição de Tancredo Neves.
E por mais grave que tenham sido os crimes cometidos por membros dos “tribunais revolucionários”, eles não absolvem a ditadura pelo assassinato da maioria dos seus membros, muitos dos quais constantes da lista de “desaparecidos” do regime militar.
Mas também não se pode reduzir os duros anos de chumbo a uma luta entre bandidos e mocinhos. Até em memória a Márcio, Salatiel, Jacques e Carlos Alberto e em respeito às suas famílias, os remanescentes da esquerda armada deveriam retirar seus esqueletos do armário, reconhecer que a democracia não era um de seus valores e fazer o seu acerto com a História.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 3/11/2021.