De queixo no chão

Tem gente que não sabe ficar de boca fechada. Parece, que se não falar, o monte de besteira que tem dentro da cabeça vai sair pelas orelhas. E os nossos ouvidos, pra variar, são os penicos. Colhi do noticiário nos últimos dias que o Enem está ficando cada vez mais parecido com a cara desse governo.  Até hoje não consegui ver, nem com aqueles potentes binóculos de marechal de campo, a cara desse governo.

Para mim, é uma esculhambação impossível de se fixar numa imagem coerente. Não tem pé nem cabeça. E as questões que caíram no Enem, pensei, não têm nada a ver com a cara desse governo. Eram sensatas, coerentes e interessantes. Graças aos 37 demitidos e outros abnegados que permaneceram.

Eu ainda estava me distraindo com essa fala do chefe do governo sobre o Enem quando, de repente, dei de cara com uma entrevista ao jornal espanhol El País dada por seu principal rival na próxima eleição. E o meu queixo, que já não estava no lugar, caiu no chão. Não é que o homem diz com todas as letras que não tem nada demais o Daniel Ortega ficar quanto tempo quiser no governo da Nicarágua se a Angela Merkel ficou 16 anos no governo da Alemanha?

E quando eu me levantava para pegar meu queixo não é que o homem diz que manifestações de protesto são proibidas no mundo todo, mas só em Cuba é que dão importância quando o governo local as proíbe?

O miserê mental ainda teve outro momento de pico nas alturas quando o homem disse que a situação da economia no Brasil é calamitosa – verdade! –, mas fez boca de siri para as lambanças de seu governo na crise mundial iniciada em 2008, que chamou de “marolinha” sem importância, e seu poste as completou no mandato seguinte, levando o país a uma recessão da qual não vamos sair tão cedo. Recessão que já vinha de lá e foi acentuada, neste governo, por uma política econômica errática e por crises políticas engendradas pelo próprio presidente, que neste ano ganhou o controle da Câmara e mesmo assim não fez andar as reformas que poderiam tornar mais leve o fardo que os brasileiros e brasileiras carregam nas costas.

O atual governo não tem interesse em governar mas em cavar mais quatro anos de desmando, enquanto o provável vencedor de 2022 não tem compromisso com a verdade histórica, mas com versões descabidas para a história, mesmo quando a verdade está na frente do nariz de todos.

Os dois se parecem muito, cada um a sua maneira. E fico pensando o que será de nós, que só podemos gritar da arquibancada, como escrevia o Plínio Marcos, que sentava do meu lado na Redação da Folha de S.Paulo nos anos 70, e como dizia também o Lourenço Diaféria, que foi meu vizinho do outro lado. Sem esquecer do Flávio Rangel, do Tarso de Castro… Saravá! Eu estava bem servido.

Sabem o que eu acho? Que é isso mesmo, que temos que levar muito na cabeça até aprender. Que um país como o nosso, em que o Parlamento boicotou sistematicamente a abolição da escravatura, e se aliou aos milicos para derrubar o Império por vingança contra os abolicionistas da família imperial, tem que pagar por seus crimes. O que eu lamento é que milhões e milhões de inocentes pagam por isso há 132 anos, neste mês comemorados, enquanto as elites políticas e econômicas dão suas festas e dançam seus bailes nas noites iluminadas, impunemente.

Rogo por justiça. É duro ver a mãe-senadora-suplente do ministro da Casa Civil botando gasolina no avião do filho com dinheiro público. É duro ver o ministro da Economia dizendo que guarda dinheiro em paraíso fiscal porque aqui o imposto é muito caro. Mas é ainda mais duro ver gente pegando ossos e legumes no lixo para fazer a sopa de seus filhos.

Os extremos me dão gastura e o centro me arrepia. O que eu gostaria mesmo é de ver justiça. Não pelo castigo que a justiça reserva ao criminoso, quase sempre o seu único fruto, mas pelo desfraldar de um novo dia que ela promove aos inocentes, aos que têm fome e sede, aos que têm na esperança a sua única inspiração.

Esses eu gostaria de ver felizes, algum dia.

Nelson Merlin é jornalista aposentado, desocupado e sonhador. 

Novembro de 2021

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