Aleluia! Ainda temos o jornalismo

O Brasil nunca esteve tão mal, mas o jornalismo, felizmente, está cumprindo seu dever. Com talento, com coragem, com louvor, com galhardia.

A terça-feira, 29 de junho, foi um dia glorioso para a imprensa brasileira. A cada momento surgia uma nova revelação, uma nova descoberta, um novo detalhe sobre o vergonhoso, absurdo, abissal escândalo de corrupção em que se afunda o desgoverno do Capitão das Trevas.

Para um velho profissional da imprensa, há muito com as chuteiras penduradas, foi glorioso ver o pipocar das notícias na tela do computador.

(Hum… Essa de “velho profissional da imprensa”, e essa de “pendurar as chuteiras”, isso foi duro… Mas paciência, fazer o quê, se é a verdade dos fatos? Vamos em frente.)

Fui anotando no Facebook. Às 16h44, postei:

“Amigos, o escândalo da corrupção com as vacinas só aumenta! (1)”

Com a notícia do Estado, assinada por Lauriberto Pompeu e Julia Affonso: “Empresa que negociou Covaxin com o governo esperava receber R$ 800 mi com venda a clínicas privadas”.

Às 16h46, tasquei:

“Amigos, o escândalo da corrupção com as vacinas só aumenta! (2)”

Com a notícia do Globo, de Leandro Prazeres e Natália Portinari: “Réu com Ricardo Barros, servidor atuou em mudança que facilitou contratação da Covaxin”.

Ás 17h15, escrevi umas poucas linhas, além de apenas dar o link para as matérias que iam sendo publicadas nos portais dos jornais:

“Amigos, o escândalo da corrupção com as vacinas só aumenta! (3)

“Não é só a Covaxin. É um padrão: o governo não quis saber das vacinas de laboratórios que têm representação direta no país: Pfizer, Janssen – e também a Coronavac, porque esta tem ligação direta com o Butantan. O governo só correu atrás das vacinas de laboratórios que tivessem intermediário. Intermediário = superfaturamento. Esse Ovo de Colombo é apresentado tintim por tintim por Carlos Andreazza em artigo no Globo desta terça-feira. É leitura obrigatória, indispensável.”

E, em seguida, transcrevia no Facebook o artigo dele – que transcrevo mais abaixo.

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Não parava de surgir informação nova, e, às 21h24 de ontem, postei:

“Amigos, o escândalo da corrupção com as vacinas só aumenta! (4) Olha a manchete do portal da Folha nesta noite de terça: ‘Governo Bolsonaro pediu propina der US$ 1 por dose, diz vendedor de vacina”. A matéria é da repórter Constança Rezende.

E ainda teria mais. O Facebook ainda não mostra a hora exata em que postei o seguinte:

“Amigos, o escândalo da corrupção com as vacinas só aumenta! (5)

Vejam a revelação da Crusoé, de O Antagonista: ‘”Luís Miranda diz ter recebido oferta de propina para não atrapalhar negócio da Covaxin’,”

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Impressionante o tamanho do lodaçal de ladroagem em que está mergulhado o desgoverno do estrupício, do desqualificado que se vendeu para os eleitores como o anti-corrupção.

Mas é impressionante também – e agora impressionante com sinal positivo, e bota positivo nisso – a rapidez, a agilidade dos jornalistas em sair descobrindo os fios desse imenso novelo que é a corrupção encastelada no Ministério da Saúde do desgoverno Bolsonaro.

Ao longo de algumas poucas horas desta terça-feira de cinzas para eles e de glória para a imprensa, O Estado, O Globo, a Folha e a revista Crusoé nos brindaram com novas informações sobre o lamaçal.

Quis registrar isto aqui no + de 50 Anos de Textos. É uma grande alegria ter isto no site.

Compilador que sou de textos importantes da imprensa, transcrevo aqui o excelente artigo de Carlos Andreazza que citei aí acima. E transcrevo também, em seguida, o artigo de Vera Magalhães no Globo desta quarta-feira, 30/6, em que ela mostra como são absurdas, ridículas, as  diferentes versões que o desgoverno Bolsonaro já apresentou, ao longo dos últimos sete dias para tentar explicar o caso da compra da vacina Covaxin.

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Mutualismo

Por Carlos Andreazza, O Globo, 29/6/2021

Tape o nariz e atenção ao que importa no Covaxingate. A fedentina emana do privilégio a empresas atravessadoras e extrapola os limites da acusação feita pelos irmãos Miranda, restrita a um só contrato. Não foi ocorrência única. Porque não foi só um o atravessador a pactuar com o governo. Este advento — o sorriso do intermediário — é o que distingue o olhar simpático e expedito do governo Bolsonaro para algumas vacinas em detrimento de outras, como as de Pfizer e Janssen, desde há muito presentes no Brasil com representação direta, e como a CoronaVac, mediada pelo Butantan.

Este advento — o sorriso do intermediário —é o que distingue o olhar apaixonado do governo para algumas vacinas; para alguns contratos. Mire-se no rastro dos atravessadores — e se chegará aos que lhes terão cantado as bolas. Não será somente um o padrinho; e não haverá padrinhos (ou anjos) capazes de entregar sem um exército de operadores com os pés no chão e as mãos na máquina.

Fato: o Ministério da Saúde foi célere em contratar imunizantes de laboratórios que tivessem intermediários no Brasil. Para ser exato: foi empenhado em contratar imunizantes de laboratórios sem representação tradicional no país, mas de súbito procurados por intermediários dispostos a representá-los. Intermediários com ótimo trânsito em Brasília, especialmente — pode ser coincidência — com o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros. Especialmente; mas não somente com ele.

Temos um padrão. Padrão bem brasileiro, e de que parece não escapar o governo do presidente que acabaria com a mamata, mas que agora já opera na frequência “não tenho como saber o que acontece nos ministérios”. O padrão: a presença do atravessador influente — não raro com desfalques, ainda frescos, aplicados no lombo do Estado — como agente acelerador de processos. Presença que explica por que o Ministério da Saúde se conveniou tão expressamente para obter os duvidosos imunizantes Covaxin e Sputnik V e por que assinou carta de intenções pela compra da vacina Convidecia. (Registre-se que, informado sobre as irregularidades de seu intermediário no Brasil, a farmacêutica chinesa CanSino, produtora da Convidecia, revogou a representação.)

Elemento comum aos três casos — repise-se: a existência do intermediário. Três intermediários — cada um a sua maneira, todos, curiosamente (pode ser coincidência), próximos a Barros, um ex-ministro da Saúde recente. A Precisa (Covaxin), a Belcher (Convidecia) e a União Química (Sputnik V) — esta última, a do mais espantoso lobby parlamentar e em defesa de cujos interesses setores do Congresso (para muito além de Barros) ensaiaram mesmo suprimir atribuições da Anvisa. (Seu lobista esteve ao menos cinco vezes com o secretário-geral — e braço — de Eduardo Pazuello, o coronel Elcio Franco.) A Belcher, alvo — em junho de 2020 — da Operação Falso Negativo, mobilizada contra companhias suspeitas de superfaturar testes de Covid-19. E a Precisa, que tem como sócio o dono da Global, empresa que deu calote de R$ 20 milhões no Ministério da Saúde quando comandado por Ricardo Barros.

Barros, o líder do governo que acabaria com a mamata. Que, como líder do governo — que acabaria com a mamata, mas que precisa de Barros para existir —, permanece. Barros, o responsável pela emenda que incluiu a agência sanitária indiana (e somente essa) entre as autoridades internacionais que avalizariam o uso emergencial de vacinas no Brasil (emenda que beneficiaria a utilização da Covaxin); emenda a uma medida provisória, a 1.026, de que o governo deliberadamente tirara o dispositivo que tratava de responsabilidade civil e que destravaria a negociação com a Pfizer — aquela sem atravessador. Barros, o líder do governo do presidente que escreveu (advocacia administrativa?) ao primeiro-ministro indiano informando que a Covaxin — ainda sem contrato e sem autorização da Anvisa — integraria o Programa Nacional de Imunizações brasileiro; isso enquanto os representantes da intermediária Precisa estavam na Índia para negociar com a Bharat Biotech.

Barros: a quem — na conversa de 20 de março, segundo o deputado Luis Miranda — Bolsonaro teria atribuído a responsabilidade sobre o “rolo” denunciado. Barros, em proteção a quem — para garantir o próprio governo, que não dura sem o que Barros representa — o presidente teria prevaricado; ou terceirizado a prevaricação, conforme a versão que Onyx Lorenzoni ditou a senadores governistas da CPI: em vez de procurar a Polícia Federal para que apurasse o que lhe fora relatado, Bolsonaro preferira, claro, falar ao ministro da Saúde sobre suspeitas no ministério, suspeitas que lambiam ao menos dois militares da cota-confiança de Pazuello; que, por seu turno, voltaria ao presidente para tranquilizá-lo sobre o contrato intermediado pela Precisa, à margem de que se tentava fazer passar — com a chancela de sua fiscal e sob pressão de agentes da atravessadora — um pagamento antecipado a uma offshore não constante do acordo e que é controlada, nota cômica, por empresa indiana especializada em vacina de gado.

Barros fica. Para que Bolsonaro possa ficar. Mais fácil mesmo, pelo menos por ora, que o preço do Centrão suba, e a sociedade se fortaleça. Mais intermediários virão. O gado justificará — pela causa! —, e o governo seguirá sem casos de corrupção. Desnecessário dizer que Barros é poderosíssimo, mas não é presidente nem ministro da Saúde.

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Escolha a sua versão

Por Vera Magalhães, O Globo, 30/6/2021

Não há a menor sombra de dúvidas de que o caso Covaxin abalou Jair Bolsonaro e seu entorno familiar.

Trata-se de um escândalo de fácil compreensão para a totalidade da população. Existem duas testemunhas, entre elas um deputado bolsonarista, que alertaram o presidente a respeito das inconsistências de um contrato bilionário para o qual houve intensa movimentação política.

O aviso se deu em março, e de lá para cá Bolsonaro nada fez. O empenho para o pagamento de R$ 1,6 bilhão para a compra de 20 milhões de doses da vacina indiana Covaxin foi feito.

Por fim, para piorar a situação de Bolsonaro, as versões para sua inação e para esse contrato com cheiro, cor e cara de irregular se sucedem sem que haja nexo entre a nova e a anterior.

A primeira delas veio em tom triunfalista, dada por um Onyx Lorenzoni mais canastrão que o usual. Ele acusou o servidor Luis Ricardo Miranda, do Ministério da Saúde, de forjar ou adulterar um documento, anunciou investigação da Controladoria-Geral da União e da Polícia Federal contra ele e ameaçou abertamente o deputado Luis Miranda com o castigo destinado aos “traidores”. Por fim, negou o superfaturamento no preço fechado com a Precisa, a intermediária da vacina, ignorando os telegramas do Itamaraty em que o mesmo imunizante era oferecido bem mais barato pelo laboratório Bharat Biotech.

Essa versão foi solapada no depoimento cinematográfico (o gênero oscilando entre o suspense e a comédia pastelão) dos irmãos Miranda na CPI, com a revelação de que o presidente teria dito aos dois, na conversa de março, que aquelas acusações deveriam ser “rolo” de seu líder na Câmara, Ricardo Barros.

Foi um curto-circuito na máquina bolsonarista de produzir versões. Diante da rapidez de senadores em apresentar uma notícia-crime contra Bolsonaro por suspeita de prevaricação, o presidente se encolheu.

Saiu-se com a explicação de que não tem como saber o que acontece em todos os ministérios, prontamente confrontada com a afirmação que ele adora fazer de que quem manda é ele e em seu governo não existe corrupção.

À CPI, passou a versão de que cobrou de Eduardo Pazuello, que por sua vez teria acionado o secretário executivo Elcio Franco, que por fim teria mandado apurar e constatado que nada havia de errado. Ora, se era assim, por que o mesmo Franco, que estava ao lado de Onyx Lorenzoni no teatro da ameaça, não disse que havia sido acionado e havia agido?

Diante do prazo correndo para responder ao STF a respeito das providências que não tomou a partir do alerta do servidor e do deputado, Bolsonaro finalmente mandou a CGU suspender temporariamente o contrato.

Ora, ora, se não havia nada de errado com a compra, por que suspendê-la? Ou, se havia indícios, por que essa providência não foi tomada três meses atrás, quando o presidente da República foi avisado?

Por que até hoje Bolsonaro não negou que tenha lançado suspeita sobre Ricardo Barros? Ou, se lançou, por que ele segue líder de seu governo?

Todas essas perguntas restam sem resposta porque se trata de uma colcha de retalhos de versões arranjadas às pressas, por um presidente em pânico e um entorno altamente incompetente. Incompetente e, como mostra este caso, permeável aos vícios que Bolsonaro disse que combateria se eleito.

E é esse aspecto, desnudar mais uma mentira da construção do “mito”, que mais apavora o bolsonarismo. A ponto de o mais reativo dos filhos, Carlos Bolsonaro, ter acionado a “bomba H” nas redes sociais: a foto de Bolsonaro com a barriga costurada logo após a facada de que foi vítima em 2018.

Depois de dois anos e meio de mandato, o que se espera do presidente da República são explicações claras e transparência nas ações de governo. O teatro de vitimização denota desespero. E não responde a nenhuma das questões em aberto do caso Covaxin.

30/6/2021

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