A CPI venceu

Fora a polêmica sobre a inclusão (ou não) de genocídio entre os crimes atribuídos ao presidente Jair Bolsonaro, o relatório que sairá da CPI da Pandemia na próxima quarta-feira não deve trazer suspresas. Apontará delitos tidos como leves, como infração a medidas sanitárias, a bárbaros, a exemplo do horror de Manaus – todos com baixíssimas chances de punição por dependerem da ação de bolsonaristas de carteirinha: o procurador-geral da República, Augusto Aras, e o presidente da Câmara, Arthur Lira. Ainda assim, a CPI do Senado já é vitoriosa.

Além de sistematizar práticas aterrorizantes do governo Bolsonaro, não raro com requintes de crueldade, que chocaram o Brasil e o mundo – pouco caso e desconfiança quanto ao número de mortes provocados pela doença, investimento e distribuição de medicamentos comprovadamente ineficazes, protelação na compra de vacinas de fabricantes confiáveis e negociatas para adquiri-las por intermediários chinfrins a preços exorbitantes, entre tantas outras -, a CPI desvendou que a corrupção no Ministério da Saúde seria de conhecimento do presidente. Também trouxe à tona estranhas conexões governo-Prevent Senior, operadora privada de saúde que teria utilizado pacientes como cobaias de um estudo clínico pró kit-Covid, cujos resultados preliminares foram apresentados por Bolsonaro, com orgulho, em uma de suas lives semanais.

A vacina no centro do debate, o que pressionou o governo a acelerar o ritmo da distribuição dos imunizantes, e o enterro definitivo do tal “tratamento precoce”, condenado pela ciência e pela própria Anvisa há mais de ano, foram outros méritos da CPI. E mesmo que por vezes tenha exagerado na veemência para tirar proveito da intensa exposição midiática, a Comissão serviu ainda como alento para os milhares de pessoas que perderam familiares, amores e amigos, para as quais o governo não fez um único gesto digno.

O senador Renan Calheiros adiantou que seu relatório indicará crimes de mais de cinco dezenas de agentes públicos e privados, incluindo Bolsonaro, seus três filhos, o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello e o atual, Marcelo Queiroga, os ministros Onyx Lorenzoni, do Trabalho e Previdência, e Wagner Rosário, da CGU, parlamentares, empresários e “negociadores” de vacinas. Pretende debater o conteúdo com seus pares até quinta-feira, quando fará a leitura final. A votação está prevista para a terça-feira seguinte, dia 26.

O relatório será encaminhado a Augusto Aras, a quem cabe decidir sobre o indiciamento de Bolsonaro e dos demais com foro privilegiado. No rol de crimes estão o de epidemia com resultado de morte, de emprego irregular de verba pública, de prevaricação, de incitação ao crime, de falsificação de documentos e de charlatanismo. Até sexta-feira não havia definição quanto aos crimes de genocídio de indígenas – para os quais Bolsonaro negou a distribuição de água potável – e contra a humanidade, que alguns dos senadores da Comissão preferem ver julgados na Corte de Haia.

Nem a cúpula da CPI acredita que o processo ande nos 30 dias que Aras tem de prazo. Para não morrer na praia, está traçado um plano B prevendo a apresentação das denúncias diretamente ao Supremo pela sociedade civil. Conversas com a OAB nesse sentido já estariam adiantadas. Quanto ao crime de responsabilidade, que resultaria em impeachment do presidente, a descrença é ainda maior. Lira já dorme sobre mais de 130 pedidos e não deverá dar bola para mais um.

Mas Comissões Parlamentares de Inquérito são um fórum político e mesmo quando suas apurações não resultam em indiciamentos, processos judiciais e prisões, elas têm o condão de criar constrangimentos, muitas vezes intransponíveis, para os investigados.

A CPI da Pandemia – cujo objeto de trabalho foi a lida errática e criminosa de um presidente que desdenhou de um vírus letal – detonou bombas previsíveis e outras de efeito retardado que perturbarão várias candidaturas no ano que vem. Os danos não se limitam a Bolsonaro. Os estilhaços se espalham por todos os que participam direta ou indiretamente desse governo desumano. Todos são cúmplices.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 17/19/2021. 

 

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